segunda-feira, 28 de janeiro de 2013

CRUZANDO A LINHA DO EQUADOR



Uma das experiências mais marcantes durante os 2 anos e meio em que estivemos em Roraima foi decerto a viagem a Manaus, pela BR-174, no final do ano de 2009. Aprontamos toda a logística e partimos num início de tarde para alcançarmos Rorainópolis – onde planejamos pernoitar – antes do anoitecer, para depois seguir viagem antes de raiar o dia. Na indispensável companhia do mano Raimundo e da cunhada Ana Neri, seguimos viagem, Aury, João Pedro – então com 1 ano e 9 meses – e eu, revezando-nos no volante, ao som de uma trilha sonora que ia de Bartô Galeno a Montserrat Caballé, regressando volta e meia ao Trio Roraimeira.
Como já havíamos visitado mais de uma vez Caracaraí, os primeiros 135 km não nos revelaram novidade alguma, para além dos buritizais do lavrado banhados pelo incisivo sol macuxi. Nossa expectativa era encontrar a floresta, que deveria ir-se adensando à medida que nos aproximássemos do sul do Estado. Imaginamos que logo depois de Caracaraí encontraríamos vestígios da floresta, mas qual não foi nossa surpresa ao testemunhar quase todo o trecho até Rorainópolis tomado por fazendas de gado. Se havia floresta para além dos limites das fazendas, a vista não permitia alcançar. Ficamos preocupados. Os mapas davam toda aquela área como coberta pela floresta Amazônica, mas em vez de mata havia somente fazenda!   
Na monótona cidade de Rorainópolis – segundo maior núcleo populacional do Estado – chegamos, como previsto, no começo da noite. Vagamos algum tempo pela solidão da cidadezinha de precário planejamento urbano até encontrarmos o Hotel Paraná, nome pomposo da pousada surrada e sem concorrência conhecida. Era sexta-feira, mas não havia sinal de qualquer agitação na cidade. Procurávamos um canto para comer e, com alguma dificuldade, deparamos uma cabana onde aparentemente transcorria uma confraternização de final de ano. Fomos recebidos com invulgar hospitalidade. Acomodaram-nos numa mesinha rústica, serviram-nos churrasco e cerveja, convidaram-nos para dançar um típico forró de maloca e, antes de pedirmos a conta, alguém veio agradecer nossa participação na festa da rádio da cidade, em nome do político dono da emissora, indagando se iríamos participar do "amigo-secreto"...
Deveriam ter-nos confundido com outrem. De toda sorte, batemos em retirada.       
Dormimos cedo e, ainda no escuro da madrugada, partimos rumo a Manaus. Depois de alguns quilômetros, já sem frequência de rádio, divisamos a silhueta da floresta espessa sob o céu estrelado, com o prenúncio da aurora no horizonte. Os primeiros raios do dia surgiram revelando um espetáculo da natureza virgem, esplêndida e grandiosa, causando admiração e assombro aos nossos pobres olhos civilizados. 
Depois de uma fotografia no marco que identifica a linha do Equador, paramos novamente para um café no Jundiá, pequena comunidade no limiar da reserva indígena Waimiri-Atroari, com aspecto de abandono, assim como muitas outras que encontramos ao longo do caminho. Na reserva, o ingresso é proibido pelos índios das 6 e meia da noite até às 6 da manhã do dia seguinte. Chegamos no exato momento em que dois deles abriam o cadeado que prendia a corrente de ferro usada como cancela. Descerraram desconfiados a corrente, arrastaram-na para a beira da pista e embrenharam no mato sem dizer uma palavra.     
Durante os 123 km da reserva sofremos com uma estrada totalmente esburacada, de tráfego praticamente inviável; em compensação, a floresta no entorno estava completamente preservada. Em determinados pontos as copas das árvores de um lado e outro da estrada encontravam-se no alto formando verdadeiros túneis.   
Quase na metade da reserva, João Pedro não resistiu à incomum trepidação do carro, provocada pelo trecho esburacado, e não segurou o vômito. Saímos, então, numa breve caminhada à beira da estrada, para tomar um ar fresco, ouvindo o canto das araras e o barulho de animais que não conseguimos identificar, até que fomos surpreendidos por um veículo da Funai parado do nosso lado, dirigido por um índio que pedia rispidamente para voltarmos para o carro e seguir viagem. 
Com os apelos, recordamos da recomendação de não sair do carro no trecho da reserva. Os waimiri-atroari não encaravam com simpatia aquela estrada cortando o território deles. As chagas abertas com a construção da BR-174 ainda não haviam sarado. No renhido confronto pela abertura da estrada, entre o Governo Federal e os índios, iniciada durante a ditadura militar, muitas vidas foram ceifadas, de ambos os lados.  
Seguimos em frente, vendo mais adiante um grupo de curumins caçando na mata fechada. Percebemos que, em meio àquela imensidão verde, a impressão inicial de que estávamos sozinhos era ilusória. Em verdade, estávamos sendo espiados por muitos olhos esquivos escondidos na mata.  
Com o fim da reserva, já no Estado do Amazonas, a estrada melhorou e as fazendas reapareceram, tomando o espaço da floresta em praticamente todo o percurso restante até Manaus. Só então conseguimos compreender o aparente excesso de zelo dos waimiri-atroaris. Imaginamos o trecho amazonense da BR-174 coberto por floresta e o encontramos invadido por fazendas. Afinal, dos 780 km entre Boa Vista e Manaus, o único trecho em que a floresta efetivamente estava preservada era aquele dentro da reserva indígena. A perplexidade desse testemunho apagou por completo a contrariedade deixada pela advertência ríspida do  índio da Funai...   
Ainda paramos em Presidente Figueiredo – única cidade amazonense à margem da BR-174 – e depois seguimos para a cidade grande, entre o encanto e a frustração.   

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