domingo, 31 de agosto de 2014

FRASE DO MÊS



"Como não ter Deus?! Com Deus existindo, tudo dá esperança: sempre um milagre é possível, o mundo se resolve. Mas, se não tem Deus, há-de a gente perdidos no vai-vem, e a vida é burra. É o aberto perigo das grandes e pequenas horas, não se podendo facilitar - é todos contra os acasos. Tendo Deus, é menos grave se descuidar um pouquinho, pois no fim dá certo. (...) Deus existe mesmo quando não há. (...) Mas a gente quer Céu é porque quer um fim: mas um fim com depois dele a gente tudo vendo." (Grande Sertão: Veredas. Guimarães Rosa)

sábado, 30 de agosto de 2014

GILMAR PAIVA NO CONFRARIA DE LEITURA




Gilmar Paiva é um anjo torto que resolveu ser gauche na vida. Amigo que tive a fortuna de conhecer há mais de quinze anos numa república de estudantes, Gilmar Paiva é um paradigma de intelectual orgânico, poeta de refinada sensibilidade, economista de inteligência privilegiada, militante da causa dos oprimidos, pensador autodidata, grande leitor... São incontáveis os predicados desse amigo dileto!
Gilmar Paiva foi ao Projeto Confraria de Leitura, do poeta e educador João Teles, ministrar uma palestra sobre a leitura. Com maestria, expôs para os jovens confrades o itinerário fascinante que começa no espanto, passa pela busca e finda com o encontro com a literatura.
No vídeo, Gilmar declama o Poema de Sete Faces, de Carlos Drummond de Andrade, o seu primeiro espanto em face da arte literária!

quarta-feira, 27 de agosto de 2014

IMAGENS DO CEARÁ - BICA DO IPU



"Além, muito além daquela serra, que ainda azula no horizonte, nasceu Iracema.
Iracema, a virgem dos lábios de mel, que tinha os cabelos mais negros que a asa da graúna, e mais longos que seu talhe de palmeira.
O favo da jati não era doce como seu sorriso; nem a baunilha recendia no bosque como seu hálito perfumado.
Mais rápida que a corça selvagem, a morena virgem corria o sertão e as matas do Ipu, onde campeava sua guerreira tribo, da grande nação tabajara. O pé grácil e nu, mal roçando, alisava apenas a verde pelúcia que vestia a terra com as primeiras águas.
Um dia, ao pino do Sol, ela repousava em um claro da floresta. Banhava-lhe o corpo a sombra da oiticica, mais fresca do que o orvalho da noite. Os ramos da acácia silvestre esparziam flores sobre os úmidos cabelos. Escondidos na folhagem os pássaros ameigavam o canto.
Iracema saiu do banho: o aljôfar d’água ainda a roreja, como à doce mangaba que corou em manhã de chuva. Enquanto repousa, empluma das penas do gará as flechas de seu arco, e concerta com o sabiá da mata, pousado no galho próximo, o canto agreste.
A graciosa ará, sua companheira e amiga, brinca junto dela. Às vezes sobe aos ramos da árvore e de lá chama a virgem pelo nome; outras remexe o uru de palha matizada, onde traz a selvagem seus perfumes, os alvos fios do crautá, as agulhas da juçara com que tece a renda, e as tintas de que matiza o algodão.
Rumor suspeito quebra a doce harmonia da sesta. Ergue a virgem os olhos, que o sol não deslumbra; sua vista perturba-se.
Diante dela e todo a contemplá-la está um guerreiro estranho, se é guerreiro e não algum mau espírito da floresta. Tem nas faces o branco das areias que bordam o mar; nos olhos o azul triste das águas profundas. Ignotas armas e tecidos ignotos cobrem-lhe o corpo.
Foi rápido, como o olhar, o gesto de Iracema. A flecha embebida no arco partiu. Gotas de sangue borbulham na face do desconhecido.
De primeiro ímpeto, a mão lesta caiu sobre a cruz da espada; mas logo sorriu. O moço guerreiro aprendeu na religião de sua mãe, onde a mulher é símbolo de ternura e amor. Sofreu mais d’alma que da ferida.
O sentimento que ele pôs nos olhos e no rosto, não o sei eu. Porém a virgem lançou de si o arco e a uiraçaba, e correu para o guerreiro, sentida da mágoa que causara.
A mão que rápida ferira, estancou mais rápida e compassiva o sangue que gotejava. Depois Iracema quebrou a flecha homicida: deu a haste ao desconhecido, guardando consigo a ponta farpada.
O guerreiro falou:
— Quebras comigo a flecha da paz?
— Quem te ensinou, guerreiro branco, a linguagem de meus irmãos? Donde vieste a estas matas, que nunca viram outro guerreiro como tu?
— Venho de bem longe, filha das florestas. Venho das terras que teus irmãos já possuíram, e hoje têm os meus.
— Bem-vindo seja o estrangeiro aos campos dos tabajaras, senhores das aldeias, e à cabana de Araquém, pai de Iracema."

José de Alencar (Iracema)

domingo, 24 de agosto de 2014

CAMINHO DA PRAIA



O dia ainda nem havia raiado quando Edmundo deu a partida da tropa. O comboio de oito burros e dois homens começava cedo sua jornada com destino à praia. Nos fardos e caçuás levavam rapadura, beiju e bolo manzape. Zé Bezerra estava com a saúde frágil. Depois de muitos anos de estrada, pensava em largar a lida do comboio. O terceiro ano seguido de seca castigava o sertão. Não fosse o verde da Ibiapaba, tudo estaria perdido. A mercadoria que descia da Serra Grande tinha um preço alto.
O caminho era longo. Dois dias de caminhada lenta. Da Palma seguiam pela Volta, Padre Linhares, Massapê, Santana do Acaraú, Marco, Bela Cruz, Cruz, até chegar no Acaraú. Era o caminho da praia.
No começo da jornada passaram por uma frente de emergência perto do Breguedof, mais à frente avistaram a pouca água do Açude da Volta, almoçaram sob a copa frondosa de um pé de umbu em Padre Linhares e, depois de um rápido cochilo, seguiram no sol a pino da tarde pela vereda estreita, escutando o canto estridente da cigarra.
Com a noite escura, arrancharam na fazenda de Seu Romualdo, entre Santana e o Marco. Seu Romualdo mantinha a hospitalidade, embora, desde a morte de Dona Maria e a ida dos filhos para Sobral, andasse meio desgostoso da vida. Na fazenda do velho amigo, os comboieiros ainda desfrutavam do jantar farto, cujo arremate era sempre um prato de coalhada com um pouco de farinha e açúcar. Não havia pagamento. Edmundo deixava umas rapaduras e uns beijus só como agrado.
Os comboieiros dormiam no alpendre até o cantar dos galos. Tomavam, então, um café quente e seguiam pela estrada silenciosa. No final do dia alcançariam a praia. No Acaraú, o comércio minguado só adquiria a mercadoria depois de muita negociação. O lucro era pouco. Levariam uns peixes na viagem de volta. Dariam uns quilos para Seu Romualdo.
Os comboieiros não sabiam que Seu Romualdo tinha falecido na noite seguinte àquela em que eles dormiram na fazenda. Eles não sabiam ainda que as pernas de Zé Bezerra não lhe permitiriam realizar uma nova jornada pela estrada da praia. Não sabiam também que aquele retorno para a Palma seria a derradeira jornada da tropa de Edmundo. Não sabiam que aqueles seriam os últimos passos do ciclo do comboio da região. 

sexta-feira, 22 de agosto de 2014

ALTOS E BAIXOS


EM ALTA

A força que move o ser humano a arriscar sua própria vida para salvar o outro. Na África, nem o ebola afasta os médicos sem fronteira da luta contra a doença. 

EM BAIXA

A barbárie que ainda insiste em perseguir o ser humano. Os vídeos que circulam na internet, de execuções sumárias e decapitações a sangue frio, revelam que o homem, com sua centelha de maldade, precisa cada vez mais alimentar o amor ao próximo... 

EM ALTA

A nova cultura de comemorar ou ao menos lembrar o aniversário alheio. Num passado próximo, pouca gente, em regra, lembrava do aniversário do outro, às vezes nem o próprio aniversariante. 

EM BAIXA

E eis que, em Coreaú, do final de 2012 para cá, toda uma interessante efervescência sociocultural sofreu um repentino eclipse total... Por que parou? Parou por quê?

segunda-feira, 18 de agosto de 2014

MEA-CULPA


Ela entrou compenetrada na sala. Os olhos tremiam lacrimosos. Na mão segurava a certidão de óbito do filho. Não pensava em vingança. Não se importava com a justiça dos homens. Desejava somente voltar no tempo para abraçar mais uma vez o seu filho. O seu filho de vida tão adoidada, viciado em droga, autor de alguns delitos, mas seu filho, tão jovem, tão bonito, tão amado... Quanta saudade!  
Seu filho morto aos vinte anos. Três tiros à queima-roupa. O tráfico não perdoa delator. Ela não se perdoa por não ter atendido ao último pedido do filho. O dinheiro, a droga do dinheiro, ainda continua na gaveta do quarto. Não serve mais para nada. Nada trará o filho de volta. Devia ter tido a coragem. O arrependimento dói tanto quanto a perda do filho. Toda noite sonha com seus olhos suplicantes pedindo os trezentos reais. Seu filho precisava do dinheiro. Ele precisava realmente comprar uma arma para se defender... 

sexta-feira, 15 de agosto de 2014

NOSSA ERA PÓS-MODERNA



    "Enquanto para a sociedade de classes, da 'antiga' modernidade, o proletariado precisava ser mantido com um mínimo de condições de subsistência (daí o Welfare State), para a sociedade eficientista, da globalização pós-moderna, o pobre é responsabilizado e estigmatizado pela própria pobreza. Longe de produzir sentimentos de solidariedade, é associado ideologicamente ao que há de mais visivelmente negativo nas esferas nacionais, em escala planetária: superpopulação, epidemias, destruição ambiental, vícios, tráfico de drogas, exploração do trabalho infantil, fanatismo, terrorismo, violência urbana e criminalidade. As classes abastadas se isolam em sistemas de segurança privada. A classe média (que hoje abarca os operários empregados), num contexto de insegurança generalizada, cobra dos legisladores penas aumentadas para o criminoso comum." (Lindgren Alves, A Declaração dos Direitos Humanos na Pós-Modernidade)

terça-feira, 12 de agosto de 2014

EDUCAÇÃO JURÍDICA POPULAR


Dentre outras funções institucionais, incumbe à Defensoria Pública a difusão e a conscientização dos direitos humanos, da cidadania e do ordenamento jurídico (Art. 4.º, III, da LC 80/94). Trata-se da tarefa conhecida como educação em direitos, uma relevante perspectiva do acesso à justiça atribuída à Defensoria Pública.
Ao contrário da orientação jurídica, que é casuística e possui a tríplice função de prevenir conflitos, solucioná-los pacificamente ou encorajar o litígio por intermédio da jurisdição, a educação em direitos é atribuição de caráter genérico, que consiste em informar, conscientizar e motivar a população necessitada, inclusive pelos diversos meios de comunicação, a respeito de seus direitos e garantias fundamentais.
A educação em direitos, num país de tamanhas desigualdades como o nosso, deve não apenas conscientizar a população de seus direitos, mas também ensiná-la a assumir postura crítica diante das distorções do sistema jurídico e incentivá-la a lutar por novos direitos, pois a justiça social, entre nós, depende muito da participação popular, sem a qual não há qualquer esperança de efetiva transformação social.  

sábado, 9 de agosto de 2014

A EDUCAÇÃO PELA PEDRA














Uma educação pela pedra: por lições;
para aprender da pedra, frequentá-la;
captar sua voz inenfática, impessoal
(pela de dicção ela começa as aulas).
A lição de moral, sua resistência fria
ao que flui e a fluir, a ser maleada;
a de poética, sua carnadura concreta;
a de economia, seu andensar-se compacta:
lições da pedra (de fora para dentro,
cartilha muda), para quem soletrá-la.
Outra educação pela pedra: no Sertão
(de dentro para fora, e pré-didática).
No Sertão a pedra não sabe lecionar,
e se lecionasse não ensinaria nada;
lá não se aprende a pedra: lá a pedra,
uma pedra de nascença, entranha a alma.

João Cabral de Melo Neto

segunda-feira, 4 de agosto de 2014

JUSTA


Justa todo dia acordava bem cedo, tomava banho de água morna, bebia o café com leite acompanhado de uma tapioca e, depois de se despedir da esposa e dos filhos, seguia de carro para o seu trabalho no banco.
Além da simpatia e do senso de humor, Justa era também reconhecido pela eficiência profissional e pela refinada cultura. Às vezes, relacionava uma contrariedade corriqueira da agência com algum episódio bíblico:
– Cafarnaum! Cafarnaum! E você, Cafarnaum: será elevada até o céu? Não, você descerá até ao Hades!
Em momentos de aborrecimento, para impressionar colegas e clientes incautos, proferia o introito das Catilinárias:
– Quousque tandem abutere Catilina patientia nostra!
Ninguém entendia nada, mas supunha naquele sujeito baixinho, gordo e careca, um fosso de erudição. Com conhecimentos que não passavam dos rudimentos do inglês, do francês, do italiano e do espanhol, Justa adquiriu a fama de poliglota, a partir do suposto domínio de cinco idiomas e, pelas suas competências reais e imaginárias, foi galgando espaços na agência e majorando seu salário com gratificações cada vez mais generosas.
– O Captain! my Captain! our fearful trip is done! Chacun pour soi et Dieu pour tous! Se non è vero, è ben trovato! Hay que endurecer, pero sin perder la ternura jamás! (...)
Quando alguém, em expressão de concordância, soltava um justamente, Justa logo atalhava:  
– Justa não mente!  
Justa era conhecido como o "papa-filas", tamanha a sua eficiência no atendimento do caixa. Enquanto os demais colegas, por preguiça, má-vontade ou inexperiência, realizavam um atendimento arrastado, para o desespero dos clientes, Justa desfazia uma fila de quarenta pessoas em pouco mais de uma hora.
Normalmente, Justa se empolgava com a própria celeridade e, entre um cliente e outro, bradava, com ironia e contentamento:
– Mais um atendimento ao molho pardo!
Os colegas de caixa, decerto, mais do que os clientes, se incomodavam com a presteza e a ironia do Justa. Um deles fez chegar ao gerente-geral uma reclamação anônima dando conta da forma incomum de um caixa chamar o cliente da fila.
Num final de expediente, Justa foi chamado à gerência-geral para uma conversa reservada, concluída com uma recomendação para não mais tratar os clientes daquela forma...
No expediente do dia seguinte, todas as atenções voltaram-se para o início do atendimento do Justa. Nos três primeiros atendimentos, Justa demorou um pouco mais do que o convencional, mantendo-se até então em total silêncio, o que levou os colegas à conclusão de que ele teria se inibido com a chamada de atenção; porém, depois de um rápido quarto atendimento, Justa finalmente quebrou o seu silêncio:
– Mais um atendimento ao molho branco! porque ao molho pardo deu problema...!