terça-feira, 31 de março de 2020

Imagem do mês



Crucifixo que venceu a Peste Negra é levado à Praça de São Pedro vazia.

Frase do mês


"Você não pode atravessar o oceano se você não tem coragem de perder a visão da costa." (Cristóvão Colombo)

Tudo outra vez : Belchior




Minha música favorita do Belchior não é Galos, noites e quintais, Os Profissionais nem Balada de Madame Frigidaire. Minha preferida é Tudo outra vez, praticamente um hino pessoal. Nela Belchior atinge o ápice da sua genialidade estética, poética e filosófica. Nela Belchior sintetiza o "universal pelo regional" da forma mais elegante e inspirada possível, fazendo uma conexão, via Concorde, entre a sua terra de origem, o Nordeste brasileiro, e a capital cultural do mundo, Paris. A música retrata uma temática recorrente na obra do cantor, a migração da terra natal em busca de oportunidade em terras alheias e distantes, com a saudade e os dilemas envolvidos nessa mudança.
"Há tempo, muito que eu estou longe de casa". O cantor começa ressaltando a longa demora e longa distância daquele que partiu do seu lar (do que há de mais seu) e não consegue retornar. "E nessas ilhas cheias de distância, o meu blusão de couro se estragou." Rio, São Paulo, Paris, para um retirante, são sempre ilhas de prosperidade em meio a um oceano de miséria. O blusão estragado demonstra os efeitos do tempo sobre o próprio migrante, a sua degeneração, uma certa perda de identidade, ainda que o blusão, moda do centro do mundo civilizado, seja de couro, o mesmo couro que veste o vaqueiro nordestino...
"Ouvi dizer num papo da rapaziada que aquele amigo que embarcou comigo, cheio de esperança e fé, já se mandou." O retirante muitas vezes tem o desejo de ir embora de sua terra para se aventurar em terras estranhas. Quando pega a estrada, vai cheio de esperança e fé, mas, muitas vezes, não consegue nada daquilo que sonhou e volta para casa para matar a saudade dos seus.
"Sentado à beira do caminho pra pedir carona. Tenho falado à mulher companheira, quem sabe lá no trópico a vida esteja a mil." 'Sentado à beira do caminho' é uma imagem muito marcante que Belchior toma de empréstimo do Roberto Carlos, numa intertextualidade que é constante em sua obra. Sentado à beira do caminho porque se está excluído do circuito do capital, porque não se tem transporte, nem dinheiro para pagar a passagem, daí a necessidade inclusive de uma carona, seja num Pau de arara, seja num Concorde. 
"E um cara que transava à noite no Danúbio azul, Me disse que faz sol na América do Sul e nossas irmãs nos esperam no coração do Brasil." O Danúbio azul, não é o rio, que nem passa pela França,  mas um cabaré onde os estrangeiros, com alguns francos, encontravam uma dama parisiense para saciar seus desejos. O sol da América do Sul (Belchior é um rapaz latino-americano, mas nesse caso limitou-se à América do Sul, para a rima dar certo com Danúbio azul...) contrasta com a noite (fria) parisiense, com a solidão do estrangeiro que tem como único refúgio os afagos pagos das damas da noite. Daí a saudade das irmãs brasileiras, latinas, de sangue quente, que satisfaziam seus desejos por amor e não pelo vil metal.
"Minha rede branca, Meu cachorro Ligeiro, Sertão, olha o Concorde, que vem vindo do estrangeiro, o fim do termo saudade, com o charme brasileiro, de alguém sozinho a cismar." O retirante começa o retorno a sua terra. A rede branca (o que há de mais cearense do que uma rede branca?), o cachorro Ligeiro (cachorro de Lampião) – quem, senão Belchior, para lembrar do cachorro de Lampião numa de suas obras-primas? Sertão, o retirante volta para o sertão nordestino, de Concorde, o avião supersônico que representava a mais alta tecnologia da época. Volta para matar a saudade, com o charme adquirido na elegante Paris, mas um charme brasileiro, porque um brasileiro é sempre um brasileiro. O cismar sozinho é mais uma elegante intertextualidade que faz alusão ao "Em cismar, sozinho, à noite, Mais prazer encontro eu lá; Minha terra tem palmeiras, onde canta o sabiá", poema  de Gonçalves Dias, escrito no "exílio" de Portugal. Alguém que cisma é alguém que pensa demoradamente, nesse caso, rumina a ideia de voltar para sua terra, onde há prazeres, palmeiras e sabiás...
"Gente de minha rua; Como eu andei distante; quando eu desapareci, ela arranjou um amante; Minha normalista linda, ainda sou estudante, da vida que eu quero dar." Enfim, acontece o reencontro com as pessoas da sua terra, gente da sua rua, aquela rua tão cara e tão sua, que chega a espantar o poeta a coragem de ter-se afastado tanto dela. Tamanho o afastamento, no tempo e no espaço, que aquela primeira paixão, aquela normalista linda dos tempos de colegial já estava nos braços de outro. E o retirante, ainda sem nada na vida, ainda estudava o que faria da própria vida.
"Até parece que foi ontem, minha mocidade, com diploma de sofrer de outra Universidade, minha fala nordestina, quero esquecer o francês." O poeta se surpreende com a velocidade do tempo, como a vida passa rápido. Agora com diploma de uma Universidade estrangeira e um sotaque francês, mas com o desejo de ser o que um dia fora, apenas um jovem rapaz nordestino apaixonado por uma normalista.
"E vou viver as coisas novas, que também são boas, o amor, humor das praças, cheias de pessoas, agora eu quero tudo, tudo outra vez." O poeta resolve voltar ao seu eu mais autêntico, as coisas novas que são as suas velhas coisas, o amor, o humor das praças, cheias de pessoas, um cenário bem próprio, do calor humano dos trópicos, do aconchego de uma rede branca armada na varanda, sob o olhar cuidadoso do cachorro Ligeiro, com os pensamentos na normalista linda. As coisas mais pessoais, regionais, enfim, que, assim como as universais, também são boas, com a diferença de que são nossas.  

sexta-feira, 27 de março de 2020

Delírio


Quando era menino, fui debater com um adulto esquizofrênico, tentando demonstrar, com argumentos racionais, que ele não era o rei do mundo, como ele acreditava. Resultado: Só não levei uma pisa porque era jovem e consegui correr mais do que ele...
Ontem, fui debater com uns fanáticos, tentando demonstrar, com argumentos racionais, que o isolamento social era uma medida não só importante, mas indispensável para conter a elevação da curva do coronavírus no Brasil e evitar o colapso do sistema de saúde para os casos de maior gravidade. Resultado: Só não fui espancado porque a discussão era virtual...
Conclusão: Não discuta com fanático. O fanático, como o louco, tem o seu próprio universo e, quem ameaça a verdade do seu delírio, é tratado como inimigo e corre risco de agressão...

quinta-feira, 26 de março de 2020

Covid-19. Isolamento social


Quem deve dizer quando o isolamento social pode parar, com um mínimo de seguranca, são os especialistas, a partir de estudos e da experiência do mundo, e não empresários, líderes religiosos e um bando de fanáticos de um Presidente paranoico. A esse lunático caberia, enquanto dura o isolamento, socorrer a economia, injetando dinheiro das mais diversas formas, como acabam de fazer os EUA, e não forçar a barra, contrariando a ciência e pondo em risco a população.

Curtas do Isolamento


Nem com o coronavírus, fala-se em regulamentar o Imposto sobre Grandes Fortunas. Incrível o poder dos bilionários deste país!

Esperar o que de alguém cujo livro preferido é a biografia do torturador Brilhante Ustra? Eu avisei!

Os fanáticos têm uma 'virtude': Assim que o chefe mudar de ideia, eles também mudam. Eis como funciona a seita bolsonarista.

Os defensores do Estado mínimo estão mais perdidos do que cachorro que caiu do caminhão da mudança.


Os ecos da casa-grande ainda povoam nosso imaginário...

segunda-feira, 23 de março de 2020

Quarentena


No terceiro dia de confinamento, já entediados da rotina monótona, largaram o celular e o controle da TV, sentaram-se perto um do outro e começaram a conversar.
– Vocês sabiam que o Decamerão nasceu num refúgio da Peste Negra? – Quebrou o silêncio o filho mais velho.
– Decamerão? – Perguntou surpresa a irmã adolescente.
– Sim, Decamerão, a obra-prima de Giovanni Boccaccio, contemporâneo de Dante e Petrarca, os três pais da língua italiana moderna...
– Iniciei uma época a leitura, mas é muito longo, acabei ficando pelo caminho. – Interveio o pai.
– De que trata o livro, filho? –  Perguntou a mãe.
– O livro reúne cem contos narrados por um grupo de sete moças e três rapazes que se abrigaram numa vila isolada de Florença para fugir da Peste Negra, entre 1348 e 1353. 
– Hum. Tive uma ideia! – Afirmou a adolescente. – Que tal cada um de nós contar uma história? Afinal, estamos nos refugiando de uma peste, assim como aconteceu com as moças e rapazes do Boccaccio.
– Boa ideia! – Concordaram todos. – Quem começa?
– Posso começar! – Disse o filho.
– Era uma vez um jovem que sonhava ser cientista. Aquele jovem, além de inteligente, acreditava nos ensinamentos de Jesus Cristo. Apesar de cristão, entusiasmava-lhe o progresso da ciência. Achava que ciência e religião não eram inconciliáveis; afinal, o conhecimento científico tem seus limites, além disso, acreditava que a ciência costuma explicar como algumas coisas acontecem, a partir da causalidade e do método científico, mas não explica o porquê de elas acontecerem. Nesse propósito, procurava evitar qualquer fundamentalismo, quer o científico, quer o religioso, visto que o fundamentalismo científico é uma pretensão da limitada criatura humana diante dos mistérios do universo e o fundamentalismo religioso é aquela crença que fecha os olhos para as verdades da vida. Durante a Peste Negra, na Idade Média, os cristãos enterraram vivos milhares de judeus, por acreditarem, primeiro, que a Peste era um castigo dos céus para as heresias do povo judeu e, depois, por acreditarem que a causa da Peste seria o envenenamento dos poços d'água por parte dos judeus. Nos julgamentos sumários, muitos judeus confessaram ter envenenado os poços, por óbvio, sob as mais crués torturas... Muitos foram queimados vivos e só em Estrasburgo mil judeus foram enterrados vivos numa cova coletiva. O fundamentalismo, mesmo o mais bem-intencionado, é sempre muito perigoso e cego. A ciência também viveu seu apogeu de euforia. Houve uma época, nos Séculos XIX e XX, em que a ciência pensou que explicaria tudo e que o progresso dominaria o universo e tornaria Deus uma peça de museu, até que algumas tragédias e a desilusão com os limites estreitos do poder do conhecimento acabaram pondo um freio no ímpeto científico. A alta tecnologia acabou culminando na tragédia apocalíptica da 2.ª Grande Guerra. Depois de o homem ir à Lua, nos anos 60, atualmente, mais de cinquenta anos depois, não tem mais ninguém pisando na Lua, muito menos se chegou a Marte, como se previa, realidade muito distante do sonho de viajar pelas galáxias na velocidade da luz... A fé sem conhecimento também não cativava aquele jovem. Os cristãos da Idade Média achavam que a Peste Negra era uma maldição, transmitida pela água ou pelo ar. Não havia naquela época uma ciência desenvolvida e os médicos que existiam eram uma mistura de alquimista, padre e cientista, que, no final das contas, também foram devorados pela peste e contribuíram para a sua proliferação. Apenas muito tempo depois a ciência descobriu que a Peste Negra era causada por uma bactéria que usava como hospedeiro a pulga do rato preto. Ou seja, uma enciclopédia de superstição de toda uma época veio abaixo a partir de uma descoberta relativamente simples para os tempos do microscópio... Definitivamente esse jovem evitava qualquer fundamentalismo. Desejava saber tudo que a ciência podia explicar razoavelmente, mas também não menosprezava os mistérios do mundo. Concordava com Shakespeare que entre o céu e a terra havia mais mistérios do que podia imaginar nossa vã filosofia... Esse jovem resolveu ser médico e logo que se formou foi para a África num surto de ebola pelo Programa Médicos Sem Fronteira. Foi logo enviado para um dos locais mais remotos do Gabão, um povoado já praticamente devastado pela epidemia. As pessoas estavam em pânico. Um terço dos moradores do local já haviam sucumbido ao vírus. A higiene era precária e as crenças e superstições não eram muito diferentes daquelas da Idade Média. O jovem sabia que, como médico, mesmo ser ter a cura, podia ajudar na recuperação dos enfermos e na profilaxia da doença. O medo era uma constante. O risco de revolta em meio ao desespero era enorme. Era preciso manter a calma, evitar  pânico, recorrer à psicologia tanto quanto à medicina. O jovem médico, ao ser enviado para a missão, teve muito medo. Pensou seriamente em não ir. Muitos médicos morrem nessas missões. Um povoado isolado em meio à floresta africana reserva muitos perigos para além do ebola, que, por si, já é aterrador. Sua família, claro, foi contra. Mas não teve jeito. Uma força lhe puxava para aquele país distante. Depois que sua equipe chegou no povoado, os mortos começaram a diminuir e a doença deixou de se espalhar. As pessoas adotaram hábitos sanitários mais cuidadosos e as medicações ministradas no hospital improvisado acabaram salvando muitas vidas. Em dois meses, o surto foi debelado e o jovem médico se despediu do povoado como herói. Um ancião lhe deu um amuleto e uma criança lhe deu uma flor. Na volta para casa, lembrou que, sem o conhecimento científico, não teria razão para ir àquele povoado, e, sem a fé cristã, não teria coragem de ir. Eis a minha história. Quem agora conta a sua?
– Que bela história, filho! Mas vamos dormir que já passa da meia-noite, amanhã a gente continua... – Disse a mãe, orgulhosa da narrativa do filho.

quinta-feira, 19 de março de 2020

Conspiração


Bolsonerd – O coronavírus é uma invenção da China para manipular o mercado…
Eu – Com certeza. Com a Peste Negra foi a mesma coisa. Naquela época, a China firmou um armistício com Genghis Khan, em que uma das cláusulas era os mongóis carregarem ratos pretos infestados de pulgas hospedeiras da bactéria Yersinia pestis até o porto de Kaffa, na Crimeia, e então catapultar seus mortos para dentro da cidade para que daí a Peste chegasse à Europa. A esquerda brasileira, à época representada pelos tupinambás, ficou ressentida com o governo comunista chinês, pois o plano de espalhar a Peste pelo mundo não incluiu o litoral brasileiro, de modo que na direita brasileira, representada pelos tamoios, não houve um único infectado…
Bolsonerd – Vixe...

terça-feira, 17 de março de 2020

Epistemologia


A relação entre o sujeito e o objeto é o centro do debate epistemológico. 
O conhecimento é uma síntese entre o objeto e o sujeito. 
"Sem sensibilidade nenhum objeto nos seria dado, e sem entendimento nenhum seria pensado. Pensamentos sem conteúdo são vazios, intuições sem conceitos são cegas." (Immanuel Kant)




sábado, 7 de março de 2020

Crônica de Coreaú




O senhor Antônio Álvaro (chamado também de Antônio Alves) tinha um comércio naquele ponto que fica perto do supermercado do Paulo do Bel, na esquina. Lá havia um banco inteiriço de madeira, talvez de uns três metros de comprimento reservado para os fregueses se sentarem durante o dia. Quando fechava, já à noite, seu Antônio deixava o banco de madeira na calçada, pernoitando, pois ninguém furtava. Ali se sentavam algumas pessoas de Coreaú para confabular, no período da noite, inclusive alguns jovens da nossa urbe. O ônibus da Ipu-Brasília atravessava a cidade , passando pelo mercado e dobrava na esquina, hoje Paulo do Bel e seguia para Camocim.

Certa data o ônibus da Ipu-Brasília, fazendo o percurso Fortaleza-Camocim, em torno da meia-noite (corujão), mais uma vez passa por essas bandas. Tinha o motorista e o cobrador das passagens. Eram, então, dois os tripulantes e, obviamente, os passageiros.

No exato momento em que o ônibus passava pelo mercado, alguns jovens sentados no banco se levantaram, tiraram o banco do lugar, sujaram-no de fezes humanas (cocô mesmo) e o colocaram no meio da rua para impedir a passagem do ônibus, à altura da Loja do Valmir Leite. Ato contínuo, os jovens se esconderam, ficando à espreita, atrás de umas árvores na Praça do Benedito Belchior.

Questão de um minuto, o ônibus teve que parar. O cobrador desceu, tirou o banco de madeira do meio da rua, e se deu conta que estava com as mãos apodrecidas de fezes (cagadas, mesmo). Olhou para um lado e outro, esculhambou o que tinha que esculhambar, como que chamando os responsáveis pelas peripécias, no entanto, a galera autora da façanha permaneceu às escondidas. O cobrador viu que estava perdendo era seu tempo e atrasando a viagem, resolveu subir no transporte às pressas, "fumando numa quenga" O ônibus prosseguiu viagem.

Quando perceberam que o ônibus já tinha tomado rumo à casa do Chico Irineu, com destino a Camocim, os jovens surgem do esconderijo, mangando do cobrador e comentando toda a marmota que aprontaram.

Fizeram isso ainda umas outras duas vezes, noutras datas.

Que galera!

Hoje vivos, adultos e pais de família.

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Fernando Machado Albuquerque (professor)