segunda-feira, 23 de março de 2020

Quarentena


No terceiro dia de confinamento, já entediados da rotina monótona, largaram o celular e o controle da TV, sentaram-se perto um do outro e começaram a conversar.
– Vocês sabiam que o Decamerão nasceu num refúgio da Peste Negra? – Quebrou o silêncio o filho mais velho.
– Decamerão? – Perguntou surpresa a irmã adolescente.
– Sim, Decamerão, a obra-prima de Giovanni Boccaccio, contemporâneo de Dante e Petrarca, os três pais da língua italiana moderna...
– Iniciei uma época a leitura, mas é muito longo, acabei ficando pelo caminho. – Interveio o pai.
– De que trata o livro, filho? –  Perguntou a mãe.
– O livro reúne cem contos narrados por um grupo de sete moças e três rapazes que se abrigaram numa vila isolada de Florença para fugir da Peste Negra, entre 1348 e 1353. 
– Hum. Tive uma ideia! – Afirmou a adolescente. – Que tal cada um de nós contar uma história? Afinal, estamos nos refugiando de uma peste, assim como aconteceu com as moças e rapazes do Boccaccio.
– Boa ideia! – Concordaram todos. – Quem começa?
– Posso começar! – Disse o filho.
– Era uma vez um jovem que sonhava ser cientista. Aquele jovem, além de inteligente, acreditava nos ensinamentos de Jesus Cristo. Apesar de cristão, entusiasmava-lhe o progresso da ciência. Achava que ciência e religião não eram inconciliáveis; afinal, o conhecimento científico tem seus limites, além disso, acreditava que a ciência costuma explicar como algumas coisas acontecem, a partir da causalidade e do método científico, mas não explica o porquê de elas acontecerem. Nesse propósito, procurava evitar qualquer fundamentalismo, quer o científico, quer o religioso, visto que o fundamentalismo científico é uma pretensão da limitada criatura humana diante dos mistérios do universo e o fundamentalismo religioso é aquela crença que fecha os olhos para as verdades da vida. Durante a Peste Negra, na Idade Média, os cristãos enterraram vivos milhares de judeus, por acreditarem, primeiro, que a Peste era um castigo dos céus para as heresias do povo judeu e, depois, por acreditarem que a causa da Peste seria o envenenamento dos poços d'água por parte dos judeus. Nos julgamentos sumários, muitos judeus confessaram ter envenenado os poços, por óbvio, sob as mais crués torturas... Muitos foram queimados vivos e só em Estrasburgo mil judeus foram enterrados vivos numa cova coletiva. O fundamentalismo, mesmo o mais bem-intencionado, é sempre muito perigoso e cego. A ciência também viveu seu apogeu de euforia. Houve uma época, nos Séculos XIX e XX, em que a ciência pensou que explicaria tudo e que o progresso dominaria o universo e tornaria Deus uma peça de museu, até que algumas tragédias e a desilusão com os limites estreitos do poder do conhecimento acabaram pondo um freio no ímpeto científico. A alta tecnologia acabou culminando na tragédia apocalíptica da 2.ª Grande Guerra. Depois de o homem ir à Lua, nos anos 60, atualmente, mais de cinquenta anos depois, não tem mais ninguém pisando na Lua, muito menos se chegou a Marte, como se previa, realidade muito distante do sonho de viajar pelas galáxias na velocidade da luz... A fé sem conhecimento também não cativava aquele jovem. Os cristãos da Idade Média achavam que a Peste Negra era uma maldição, transmitida pela água ou pelo ar. Não havia naquela época uma ciência desenvolvida e os médicos que existiam eram uma mistura de alquimista, padre e cientista, que, no final das contas, também foram devorados pela peste e contribuíram para a sua proliferação. Apenas muito tempo depois a ciência descobriu que a Peste Negra era causada por uma bactéria que usava como hospedeiro a pulga do rato preto. Ou seja, uma enciclopédia de superstição de toda uma época veio abaixo a partir de uma descoberta relativamente simples para os tempos do microscópio... Definitivamente esse jovem evitava qualquer fundamentalismo. Desejava saber tudo que a ciência podia explicar razoavelmente, mas também não menosprezava os mistérios do mundo. Concordava com Shakespeare que entre o céu e a terra havia mais mistérios do que podia imaginar nossa vã filosofia... Esse jovem resolveu ser médico e logo que se formou foi para a África num surto de ebola pelo Programa Médicos Sem Fronteira. Foi logo enviado para um dos locais mais remotos do Gabão, um povoado já praticamente devastado pela epidemia. As pessoas estavam em pânico. Um terço dos moradores do local já haviam sucumbido ao vírus. A higiene era precária e as crenças e superstições não eram muito diferentes daquelas da Idade Média. O jovem sabia que, como médico, mesmo ser ter a cura, podia ajudar na recuperação dos enfermos e na profilaxia da doença. O medo era uma constante. O risco de revolta em meio ao desespero era enorme. Era preciso manter a calma, evitar  pânico, recorrer à psicologia tanto quanto à medicina. O jovem médico, ao ser enviado para a missão, teve muito medo. Pensou seriamente em não ir. Muitos médicos morrem nessas missões. Um povoado isolado em meio à floresta africana reserva muitos perigos para além do ebola, que, por si, já é aterrador. Sua família, claro, foi contra. Mas não teve jeito. Uma força lhe puxava para aquele país distante. Depois que sua equipe chegou no povoado, os mortos começaram a diminuir e a doença deixou de se espalhar. As pessoas adotaram hábitos sanitários mais cuidadosos e as medicações ministradas no hospital improvisado acabaram salvando muitas vidas. Em dois meses, o surto foi debelado e o jovem médico se despediu do povoado como herói. Um ancião lhe deu um amuleto e uma criança lhe deu uma flor. Na volta para casa, lembrou que, sem o conhecimento científico, não teria razão para ir àquele povoado, e, sem a fé cristã, não teria coragem de ir. Eis a minha história. Quem agora conta a sua?
– Que bela história, filho! Mas vamos dormir que já passa da meia-noite, amanhã a gente continua... – Disse a mãe, orgulhosa da narrativa do filho.

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