segunda-feira, 31 de julho de 2017

FRASE DO MÊS


"Outubro começou como os meses costumam começar: a sua entrada é, no fundo, discreta e completamente silenciosa. Sem sinais nem fogueiras, os meses insinuam-se, de um modo que facilmente escapa à atenção de quem não esteja muito alerta. Na realidade, o tempo não tem cortes, não há trovões nem tempestades no início de um novo mês ou de um novo ano; e mesmo na aurora de um novo século só os homens soltam foguetes e repicam os sinos." (A Montanha Mágica. Thomas Mann) 

"Der Oktober brach an, wie neue Monate anzubrechen pflegen, - es ist an und für sich ein vollkommen bescheidenes und geräuschloses Anbrechen, ohne Zeichen und Feuermale, ein stilles Sicheinschleichen also eigentlich, das der Aufmerksamkeit, wenn sie nicht strenge Ordnung hält, leicht entgeht. Die Zeit hat in Wirklichkeit keine Einschnitte, es gibt kein Gewitter oder Drommetengetön beim Beginn eines neuen Monats oder Jahres, und selbst bei dem eines neuen Säkulums sind es nur wir Menschen, die schießen und läuten." (Der Zauberberg. Thomas Mann)

sábado, 29 de julho de 2017

SONETO XXVII


Canto a terra querida em que nasci;
minha aldeia, morada de minh'alma;
o meu porto seguro, a minha Palma;
o meu solo vermelho em que cresci.

Canto a terra singela onde aprendi
que na vida é preciso agir com calma,
pois o tempo supera até o trauma
dos horrores do tempo em que vivi.

Minha terra deitada em verde vale;
a igreja, a coluna e a velha casa,
o cachorro e os sonhos que perdi.

Não há outra paragem que se iguale;
o meu peito inda queima feito brasa,
desde aquele momento em que parti.

Eliton Meneses

terça-feira, 25 de julho de 2017

HISTÓRIAS DE MENINO




A primeira menção ao nome do Mardone França li no livro História de Coreaú, do Leonardo Pildas, onde ele consta dentre as personalidades ilustres da Palma como estatístico, mestre e doutor em Bioestatística e professor universitário (cf. p. 556). Anos depois, graças às redes sociais, tive o prazer de trocar uns dedos de prosa virtuais com ele e, em meio à conversa, pedi que ele enviasse algum texto de sua lavra para o Blog da APL, a nossa academia de letras rebelde da Palma. Pouco depois, Mardone me enviou um conto, publicado no Blog da APL, que foi um dos mais singelos e mais bem escritos que já li na vida: Tupã, o anjo negro, sobre o simpático cão da família Carneiro de França, nos seus tempos de Coreaú. Tupã faria uma ótima dupla (casal, quiçá), decerto regulando em grandeza d'alma, com a cachorra Baleia. Em seguida vieram outras peças memoráveis, como o Conto de Setembro, o Banco do Jaime e Açudes, serra e Meral, todos publicados no Blog da APL e, prontamente, já selecionadas para uma antologia de contos da Palma que ainda está no prelo. Além dos publicados no Blog, Mardone me enviou um conto que, se tivesse que escolher um para plagiar, seria este o escolhido: O gavião da tarde. Um conto que nos representa a todos nós, crias da Palma contraditoriamente tão pobre e tão rica ao mesmo tempo; pobre de bens materiais, mas rica de memórias e sentimentos. É óbvio que, com tamanho talento literário, Mardone não poderia ficar de fora da academia rebelde da Palma, e logo se tornou um membro-honorário — honorário e não efetivo, gize-se, apenas por estar, à época, afastado fisicamente das terras palmenses.
Confesso que às vezes sou um tanto generoso ao apreciar o trabalho literário alheio. Às vezes elogio, até como estímulo, algo que, de repente, sequer valor literário possa ter. Mas isso, absolutamente, não acontece com os contos e as crônicas do Mardone. Tenho três grandes referências do conto, uma internacional, Tchekhov; uma latinoamericana, Borges; e uma nacional, Machado de Assis. Agora, tenho também uma referência regional, que atende pelo nome de Mardone França, que, por acaso, nasceu na mesma quadra da nossa velha Palma. O gavião da tarde não deixa nada a dever à Gaivota, do Tchekhov, nada a dever ao Aleph, do Borges, nada a dever à Missa do Galo, do Machado de Assis.         
Quando passei por Natal, em meados de 2016, encontrei o Mardone e ele me anunciou que estava trabalhando no projeto de publicar um livro de contos e eis que, um ano depois, chega às minhas mãos Histórias de menino, uma coletânea de contos e crônicos — encabeçada, obviamente, por O gaivão da tarde —, que reúne quinze capítulos de pura literatura, com tudo a que uma autêntica obra literária pode abranger, como talento, erudição e sensibilidade, com um diferencial particularmente especial, o cenário telúrico da nossa Palma como pano de fundo de quase todas as peças, ou seja, as Histórias de menino são, sobretudo, as impressões do Mardone França — o Poeta das Luzes, por conta do seu talento fotográfico — sobre o espaço-tempo da sua infância na Palma. Um livro escrito com esmero e maestria, um livro que honra a tradição do universal pelo regional, abeberando-se na sabedoria do velho Tolstoi, que dizia: "Pinta tua aldeia e pintarás o mundo." Um livro, enfim, verdadeiramente literário que honra a academia rebelde da Palma — e credencia seu autor, ipso facto, à condição de membro-efetivo da APL — e que honra, sobretudo, a velha Palma, torrão natal que carregamos conosco, sempre, por mais longe que nós vamos.
Quando soube da ideia do livro não pude conter o entusiamo e reforçar amiudadamente o estímulo para que ele saísse o quanto antes. E eis que ora o temos diante de nós. Histórias de menino nasce com a feição de grande literatura, com o selo de clássico da literatura regional e com a marca — de ferrar gado —, ao final de cada capítulo, como assinatura atávica, de cada um dos filhos de seu Carneiro e dona Quinoca...  
O livro é uma obra de arte do começo ao fim. Não se pode olvidar da capa e da contracapa, que trazem uma pintura da Arimá Viana, esposa do autor, retratando a Matriz da Palma e o vale do Coreaú permeado pelas reminiscências do menino que se fez homem, sem deixar de ser menino. Li o livro de um fôlego só. Aposto que quem ler O gaivão da tarde, o primeiro conto, não parará mais até concluir o livro. Borges dizia: "Que outros se jactem do que escrevem, eu me orgulho do que eu leio." Histórias de menino é um desses orgulhos que tenho de ter lido, uma poesia em prosa das memórias de um menino da Palma, assim como você, como diria Belchior, assim como eu, da Palma — do Coreaú, tanto faz —, paradoxalmente, às vezes tão pequena e efêmera, mas às vezes tão grande e eterna...

segunda-feira, 24 de julho de 2017

PAIS & FILHOS



Sempre que finalizo um romance, um conto, uma crônica interessante... gosto de tecer algumas considerações ou mesmo fazer uma breve resenha crítica sobre a obra, até como uma forma de assimilar melhor o enredo do livro ou mesmo na tentativa de fazer um estudo crítico, bem como, quiçá, incentivar outros a também se interessarem pela leitura!
Pais & Fihos é uma obra do realismo russo, da segunda metade do Século XIX (1862), de autoria de Ivan Turguêniev, escritor que popularizou o termo niilismo, corrente filosófica que apresenta uma visão cética e radical dos valores religiosos, políticos e sociais, que, inclusive, influenciou a filosofia de Nietzsche e alguns romances de Fiódor Dostoievsky, meu escritor favorito!
Como sugere o próprio título do romance, Pais & Filhos trata do conflito de gerações impulsionado pelas mudanças políticas e sociais que estavam acontecendo na Rússia oitocentista da época. Fazendo uma rápida digressão histórica do momento: ocorria o fim do regime de servidão na Rússia, estando o camponês (servo) sob a tutela do proprietário de terras. A organização política e social da época ainda era feudal, diferente das organizações políticas ocidentais.
A história começa com dois jovens, o médico niilista Bazárov e seu escudeiro e grande amigo Arkádi, chegando à casa de Nikolai Pietróvitch, pai de Árkádi, no interior da Rússia, nos arredores da cidadezinha conhecida como Marina. Bázarov se considera um niilista, aquele que não crê em nada, que se recusa a seguir regras e autoridades e é avesso às manifestações sentimentais. Arkádi, embora mantenha certa fidelidade à ideologia do amigo, se mostra mais sentimental e corresponde melhor às manifestações afetivas do pai. Nicokolai Pietróvitch, assim como seu irmão, tio de Arkádi, Pável Pietróvitch, constituem parte da elite aristocrata ultrapassada da época. Suas atitudes antiquadas entrarão em choque com a ideologia de Bázarov, fato que contribuirá para o completo desentendimentos entre eles e para nutrir o sentimento de ódio de Pável pelo amigo do sobrinho e hóspede de Nikolai. Assim, haverá sempre em toda a narrativa esse conflito geracional entre o velho e o novo. Os amigos visitam os pais de Bazárov em uma outra cidade do interior da Rússia. Vassíli Ivánovitch e Arina Vassílievna são aqueles pais amáveis que fazem de tudo para agradar o filho; porém, Bazárov não se permite manifestações de afetos paternais. Nessas visitas, os dois conhecem a viúva Ana Serguêievna e sua irmã caçula Kátia e, a partir daí, um sentimento mais puro do amor faz com que os dois, por um momento, se deixem levar, embora Bazárov não se renda por completo aos seus sentimentos interiores por Ana e acabe no fim da narrativa tendo um final trágico, fruto talvez das suas próprias convicções. Por outro lado, Arkádi se entrega ao amor e terá uma vida próspera com Kátia!
Assim é que um livro de apenas 200 páginas sintetiza de forma tão pungente a realidade das relações familiares, a discrepância de duas gerações distintas e, após sua publicação, contribuiu para a mobilização social e o arrebatamento niilista que influenciaria muuitas gerações posteriores, perpassando grandes obras de renomados escritores russos como Os irmãos Karamazov, de Fiódor Dostoievsky. 
Enfim, fica a dica de leitura introspectiva!

Auricélia Souza Fontenele
Professora de Literatura

quinta-feira, 20 de julho de 2017

NATACHA


O olhar vago no horizonte denunciava que Natacha já não era a mesma. Perdera o companheiro, aquele com quem compartilhara quase tudo na vida. Três anos de namoro. Dez anos de convivência. Agora estava só. O cãozinho também estava triste. Era Luiz quem passeava com ele todas as tardes. Sentia falta do dono. Assim como Natacha, quase não comia ultimamente. De repente, um enorme vazio se abateu sobre ambos. Há menos de dois meses, Luiz percorria animado as ruas do bairro todo fim de tarde. 
Foi tudo muito rápido. As dores no estômago, a consulta, os exames, a internação... Em menos de três semanas Luiz foi enterrado. Numa tarde nublada de agosto, alguns familiares e os poucos amigos compareceram ao velório. Um amigo com feição de profeta errante declamou o Salmo 91 e o caixão desceu para a cova funda.    
Aquele que habita no esconderijo do Altíssimo à sombra do Onipotente descansará. (...)
Luiz era ateu. Em nenhum momento do seu suplício recorreu à religião. No começo, imaginou tratar-se de uma simples gastrite. Quando soube da metástase, com uma peculiar calma estoica, passou a organizar suas pendências financeiras e a tentar consolar a companheira.
O cadáver estava duro e frio. Muito diferente daquele Luiz há pouco tão cheio de vida. Natacha beijou-lhe a face e não sentiu sua alma presente. O ser humano muda muito quando morre. Sem alma, é como um tronco de árvore oco largado no chão.  
Natacha era espírita kardecista. A doutrina de fato trouxe-lhe bastante alívio. Se fosse ateia não saberia como suportar tamanha dor. A despeito do consolo espiritual, a saudade apertava. O apartamento estava vazio. O cãozinho agora passava o dia deitado, num canto. Luiz foi um bom marido. Natacha não tinha coragem de abrir o guarda-roupa dele. Toda manhã parecia ouvir uns passos... Numa carta psicografada, Luiz disse que estava bem. Duas semanas depois da morte do dono, o cãozinho também não resistiu. Natacha acumulava a sua segunda perda num intervalo de tempo tão curto. O apartamento ficou ainda mais vazio. Toda manhã, além dos passos do Luiz, passou a ouvir também o latido do cãozinho.
Natacha quase não saía do apartamento. Não estava com disposição para ir ao centro espírita. Não tinha com quem conversar. Não tinha mais nem um bicho de estimação para acariciar. Continuou, por alguns dias, servindo a água e a ração do cãozinho... Pediu licença no trabalho. Passou a ler mais intensamente a Bíblia, o Livro dos Espíritos, um livro de autoajuda... Mas não manteve nenhuma leitura. Precisava viajar. Adquirir um cachorro novo. Luiz costumava dizer que a vida não tinha um sentido predeterminado. Cada qual deveria atribuir a ela o sentido que melhor lhe aprouvesse. Era chegada a hora de atribuir um novo sentido à sua vida. Precisava resgatar o gosto pelas pequenas coisas. Precisava aguar as plantas que estavam murchando, conversar com a melhor amiga, visitar novamente o orfanato... Precisava perder o medo e resolver adotar aquela criança que lhe abriu os braços na última vez em que foi lá... 

segunda-feira, 17 de julho de 2017

SONETO XXVI


Como as águas do rio as coisas correm,
Arrastadas no vão da correnteza;
Por qualquer afluente, sem beleza,
Muitas barcas perdidas até morrem. 

Velam noites compridas que decorrem
Sob o canto disforme da tristeza;
Singram vales desertos na certeza
De que todos se agarram, mas escorrem.

Poucas coisas no mundo têm raízes;
Todos vão à procura de descanso,
Quando finda a jornada sem grandeza. 

O que fica do bando de infelizes,
 À deriva na curva de um remanso,
É o espólio da terna natureza.

 Eliton Meneses

quarta-feira, 12 de julho de 2017

REFORMA TRABALHISTA



Entendo o sujeito ser contra o PT, ser contra a Dilma, ser contra o Lula... Agora, o sujeito ser contra o trabalhador (ele também um trabalhador) e aplaudir as conquistas do patrão, aí já é um ato de desvairada loucura... Se a criatura não tem nem noção de como funciona a relação capital-trabalho, devia pelo menos parar de passar vergonha nas redes sociais...

quinta-feira, 6 de julho de 2017

SONETO XXV

                            "L'amante nell'amato si trasforma." (Petrarca)

Não podia conter o pensamento;
Muitas vezes se vira angustiado;
Bem difícil era vê-lo concentrado;
Percorria o seu mundo, desatento.

Sempre errava na fala o seu momento;
Precisava ser mais organizado;
Costumava sonhar, mas acordado;
Outro disse faltar-lhe sentimento.

Não sabia domar seu movimento;
Era sempre inquieto e ansioso;
Era cheio de perdas e retardos.

Lamentava depois do açodamento;
Não ficava um instante ocioso;
Um transtorno, porém, com muitos fardos.

Eliton Meneses

sábado, 1 de julho de 2017

SONETO XXIV


Ficou o mesmo no correr dos anos;
o mesmo tolo desde que nascido.
Passou a vida inteira embevecido,
atado à corda dos seus desenganos.

Seguia o tosco arranjo dos arcanos.
Quisera um dia não haver perdido
aquela luta em que foi, aturdido,
levado à lona por servis tiranos.

Saiu de casa sem nenhum destino,
atravessando a madrugada fria,
com a insônia a percorrer a rua.

Em cada esquina mais um desatino;
uma comédia melhor contaria
a sua história toda nua e crua.

Eliton Meneses