Minha música favorita do Belchior não é Galos, noites e quintais, Os Profissionais nem Balada de Madame Frigidaire. Minha preferida é Tudo outra vez, praticamente um hino pessoal. Nela Belchior atinge o ápice da sua genialidade estética, poética e filosófica. Nela Belchior sintetiza o "universal pelo regional" da forma mais elegante e inspirada possível, fazendo uma conexão, via Concorde, entre a sua terra de origem, o Nordeste brasileiro, e a capital cultural do mundo, Paris. A música retrata uma temática recorrente na obra do cantor, a migração da terra natal em busca de oportunidade em terras alheias e distantes, com a saudade e os dilemas envolvidos nessa mudança.
"Há tempo, muito que eu estou longe de casa". O cantor começa ressaltando a longa demora e longa distância daquele que partiu do seu lar (do que há de mais seu) e não consegue retornar. "E nessas ilhas cheias de distância, o meu blusão de couro se estragou." Rio, São Paulo, Paris, para um retirante, são sempre ilhas de prosperidade em meio a um oceano de miséria. O blusão estragado demonstra os efeitos do tempo sobre o próprio migrante, a sua degeneração, uma certa perda de identidade, ainda que o blusão, moda do centro do mundo civilizado, seja de couro, o mesmo couro que veste o vaqueiro nordestino...
"Ouvi dizer num papo da rapaziada que aquele amigo que embarcou comigo, cheio de esperança e fé, já se mandou." O retirante muitas vezes tem o desejo de ir embora de sua terra para se aventurar em terras estranhas. Quando pega a estrada, vai cheio de esperança e fé, mas, muitas vezes, não consegue nada daquilo que sonhou e volta para casa para matar a saudade dos seus.
"Sentado à beira do caminho pra pedir carona. Tenho falado à mulher companheira, quem sabe lá no trópico a vida esteja a mil." 'Sentado à beira do caminho' é uma imagem muito marcante que Belchior toma de empréstimo do Roberto Carlos, numa intertextualidade que é constante em sua obra. Sentado à beira do caminho porque se está excluído do circuito do capital, porque não se tem transporte, nem dinheiro para pagar a passagem, daí a necessidade inclusive de uma carona, seja num Pau de arara, seja num Concorde.
"E um cara que transava à noite no Danúbio azul, Me disse que faz sol na América do Sul e nossas irmãs nos esperam no coração do Brasil." O Danúbio azul, não é o rio, que nem passa pela França, mas um cabaré onde os estrangeiros, com alguns francos, encontravam uma dama parisiense para saciar seus desejos. O sol da América do Sul (Belchior é um rapaz latino-americano, mas nesse caso limitou-se à América do Sul, para a rima dar certo com Danúbio azul...) contrasta com a noite (fria) parisiense, com a solidão do estrangeiro que tem como único refúgio os afagos pagos das damas da noite. Daí a saudade das irmãs brasileiras, latinas, de sangue quente, que satisfaziam seus desejos por amor e não pelo vil metal.
"Minha rede branca, Meu cachorro Ligeiro, Sertão, olha o Concorde, que vem vindo do estrangeiro, o fim do termo saudade, com o charme brasileiro, de alguém sozinho a cismar." O retirante começa o retorno a sua terra. A rede branca (o que há de mais cearense do que uma rede branca?), o cachorro Ligeiro (cachorro de Lampião) – quem, senão Belchior, para lembrar do cachorro de Lampião numa de suas obras-primas? Sertão, o retirante volta para o sertão nordestino, de Concorde, o avião supersônico que representava a mais alta tecnologia da época. Volta para matar a saudade, com o charme adquirido na elegante Paris, mas um charme brasileiro, porque um brasileiro é sempre um brasileiro. O cismar sozinho é mais uma elegante intertextualidade que faz alusão ao "Em cismar, sozinho, à noite, Mais prazer encontro eu lá; Minha terra tem palmeiras, onde canta o sabiá", poema de Gonçalves Dias, escrito no "exílio" de Portugal. Alguém que cisma é alguém que pensa demoradamente, nesse caso, rumina a ideia de voltar para sua terra, onde há prazeres, palmeiras e sabiás...
"Gente de minha rua; Como eu andei distante; quando eu desapareci, ela arranjou um amante; Minha normalista linda, ainda sou estudante, da vida que eu quero dar." Enfim, acontece o reencontro com as pessoas da sua terra, gente da sua rua, aquela rua tão cara e tão sua, que chega a espantar o poeta a coragem de ter-se afastado tanto dela. Tamanho o afastamento, no tempo e no espaço, que aquela primeira paixão, aquela normalista linda dos tempos de colegial já estava nos braços de outro. E o retirante, ainda sem nada na vida, ainda estudava o que faria da própria vida.
"Até parece que foi ontem, minha mocidade, com diploma de sofrer de outra Universidade, minha fala nordestina, quero esquecer o francês." O poeta se surpreende com a velocidade do tempo, como a vida passa rápido. Agora com diploma de uma Universidade estrangeira e um sotaque francês, mas com o desejo de ser o que um dia fora, apenas um jovem rapaz nordestino apaixonado por uma normalista.
"E vou viver as coisas novas, que também são boas, o amor, humor das praças, cheias de pessoas, agora eu quero tudo, tudo outra vez." O poeta resolve voltar ao seu eu mais autêntico, as coisas novas que são as suas velhas coisas, o amor, o humor das praças, cheias de pessoas, um cenário bem próprio, do calor humano dos trópicos, do aconchego de uma rede branca armada na varanda, sob o olhar cuidadoso do cachorro Ligeiro, com os pensamentos na normalista linda. As coisas mais pessoais, regionais, enfim, que, assim como as universais, também são boas, com a diferença de que são nossas.
"Há tempo, muito que eu estou longe de casa". O cantor começa ressaltando a longa demora e longa distância daquele que partiu do seu lar (do que há de mais seu) e não consegue retornar. "E nessas ilhas cheias de distância, o meu blusão de couro se estragou." Rio, São Paulo, Paris, para um retirante, são sempre ilhas de prosperidade em meio a um oceano de miséria. O blusão estragado demonstra os efeitos do tempo sobre o próprio migrante, a sua degeneração, uma certa perda de identidade, ainda que o blusão, moda do centro do mundo civilizado, seja de couro, o mesmo couro que veste o vaqueiro nordestino...
"Ouvi dizer num papo da rapaziada que aquele amigo que embarcou comigo, cheio de esperança e fé, já se mandou." O retirante muitas vezes tem o desejo de ir embora de sua terra para se aventurar em terras estranhas. Quando pega a estrada, vai cheio de esperança e fé, mas, muitas vezes, não consegue nada daquilo que sonhou e volta para casa para matar a saudade dos seus.
"Sentado à beira do caminho pra pedir carona. Tenho falado à mulher companheira, quem sabe lá no trópico a vida esteja a mil." 'Sentado à beira do caminho' é uma imagem muito marcante que Belchior toma de empréstimo do Roberto Carlos, numa intertextualidade que é constante em sua obra. Sentado à beira do caminho porque se está excluído do circuito do capital, porque não se tem transporte, nem dinheiro para pagar a passagem, daí a necessidade inclusive de uma carona, seja num Pau de arara, seja num Concorde.
"E um cara que transava à noite no Danúbio azul, Me disse que faz sol na América do Sul e nossas irmãs nos esperam no coração do Brasil." O Danúbio azul, não é o rio, que nem passa pela França, mas um cabaré onde os estrangeiros, com alguns francos, encontravam uma dama parisiense para saciar seus desejos. O sol da América do Sul (Belchior é um rapaz latino-americano, mas nesse caso limitou-se à América do Sul, para a rima dar certo com Danúbio azul...) contrasta com a noite (fria) parisiense, com a solidão do estrangeiro que tem como único refúgio os afagos pagos das damas da noite. Daí a saudade das irmãs brasileiras, latinas, de sangue quente, que satisfaziam seus desejos por amor e não pelo vil metal.
"Minha rede branca, Meu cachorro Ligeiro, Sertão, olha o Concorde, que vem vindo do estrangeiro, o fim do termo saudade, com o charme brasileiro, de alguém sozinho a cismar." O retirante começa o retorno a sua terra. A rede branca (o que há de mais cearense do que uma rede branca?), o cachorro Ligeiro (cachorro de Lampião) – quem, senão Belchior, para lembrar do cachorro de Lampião numa de suas obras-primas? Sertão, o retirante volta para o sertão nordestino, de Concorde, o avião supersônico que representava a mais alta tecnologia da época. Volta para matar a saudade, com o charme adquirido na elegante Paris, mas um charme brasileiro, porque um brasileiro é sempre um brasileiro. O cismar sozinho é mais uma elegante intertextualidade que faz alusão ao "Em cismar, sozinho, à noite, Mais prazer encontro eu lá; Minha terra tem palmeiras, onde canta o sabiá", poema de Gonçalves Dias, escrito no "exílio" de Portugal. Alguém que cisma é alguém que pensa demoradamente, nesse caso, rumina a ideia de voltar para sua terra, onde há prazeres, palmeiras e sabiás...
"Gente de minha rua; Como eu andei distante; quando eu desapareci, ela arranjou um amante; Minha normalista linda, ainda sou estudante, da vida que eu quero dar." Enfim, acontece o reencontro com as pessoas da sua terra, gente da sua rua, aquela rua tão cara e tão sua, que chega a espantar o poeta a coragem de ter-se afastado tanto dela. Tamanho o afastamento, no tempo e no espaço, que aquela primeira paixão, aquela normalista linda dos tempos de colegial já estava nos braços de outro. E o retirante, ainda sem nada na vida, ainda estudava o que faria da própria vida.
"Até parece que foi ontem, minha mocidade, com diploma de sofrer de outra Universidade, minha fala nordestina, quero esquecer o francês." O poeta se surpreende com a velocidade do tempo, como a vida passa rápido. Agora com diploma de uma Universidade estrangeira e um sotaque francês, mas com o desejo de ser o que um dia fora, apenas um jovem rapaz nordestino apaixonado por uma normalista.
"E vou viver as coisas novas, que também são boas, o amor, humor das praças, cheias de pessoas, agora eu quero tudo, tudo outra vez." O poeta resolve voltar ao seu eu mais autêntico, as coisas novas que são as suas velhas coisas, o amor, o humor das praças, cheias de pessoas, um cenário bem próprio, do calor humano dos trópicos, do aconchego de uma rede branca armada na varanda, sob o olhar cuidadoso do cachorro Ligeiro, com os pensamentos na normalista linda. As coisas mais pessoais, regionais, enfim, que, assim como as universais, também são boas, com a diferença de que são nossas.
12 comentários:
Amei a sua interpretação da música !!!!! Como vc falou: é uma das musicas mais bonitas do Belchior
👏👏👏👏
👍👏👏👏
Linda musica
Na parte "E vou viver as coisas novas, que também são boas", na minha opinião, o poeta fala do que é novo e de como nos assusta, por isso muitas vezes ouvimos ou até falamos aquela " NO MEU TEMPO". tem outra musica que o poeta aborda isso na citação; "mais é você que ama o passado e que não vê que o novo sempre vem". De resto interpretação perfeita. Comecei a ver a música de outra forma, obrigado.
Bravo, Elinton Meneses! 👏👏👏😍😍😍 Que bela e lúcida análise dessa obra prima do Belchior! Amei o seu texto!
@franciscodecarlo - Ubatuba/SP
Clareza de percepção dos sentimentos de nosso Belchior.
perfeito 👏
👏
Bela e erudita análise da música genial que reflete um jovem angustiado no seu tempo a procurar horizontes de liberdade, com uma história regional-internacional a alimentar um enfrentamento de adversidades, com uma amplitude de possibilidades quando se está sentado à beira do caminho.
Parabéns!
As letras das músicas de Belquior são verdadeiras obras de arte. O cara era um gênio.
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