sexta-feira, 23 de novembro de 2012

ENTRE O RISOTO E A DAMURIDA


O chefe da repartição costumava dizer que, se alguém não tivesse feito nada de extraordinário até os 30 anos de idade, não o faria mais a partir daí. Como num golpe do destino, aos 30 anos fui nomeado para outro cargo público em Roraima. Não hesitei, arrumei as malas e, num misto de saudade e de expectativa, apanhei o voo. Na conexão em Brasília, na fila para o voo com destino a Boa Vista, chamou-me a atenção um acalorado debate acerca da demarcação da reserva indígena Raposa Serra do Sol, em vias de ser julgada pelo Supremo Tribunal Federal. 
Um empresário roraimense, nascido no Ceará, defendia a demarcação descontínua, sustentando a necessidade da produção de arroz para o progresso econômico do Estado, a contribuição do empresariado para a criação de emprego e renda, o interesse das ONGs internacionais nos minérios da reserva, o direito de permanência dos fazendeiros tradicionais da área, a preguiça dos índios... 
A confrontá-lo, um cantor roraimense, também nascido no Ceará, defendia a demarcação contínua da reserva, retrucando que a produção de arroz pertencia a meia dúzias de latifundiários que exploravam a mão-de-obra semi-escravizada de muitos índios, exportando praticamente toda a produção para outros Estados com isenção fiscal conferida pelo Governo do Estado de Roraima; que os missionários vinculados a ONGs com acesso à reserva nunca haviam demonstrado interesses outros para além da proteção dos índios e do meio ambiente (ao contrário dos rizicultores); que os fazendeiros tradicionais, indenizados para a desocupação, haviam se instalado em terras historicamente ocupadas por macuxis, wapichanas, taurepangs, ingaricós e patamonas e que os índios trabalham somente na medida de suas necessidades, sem preocupações com o acúmulo de capital, não por preguiça, mas por hábito sociocultural que não era da conta do "homem branco".
Na última chamada do voo, de repente o entusiasmo do cantor serenou e, tocando no punho e mirando nos olhos do empresário, lhe disse:
– Meu caro, você é empresário e, como tal, está defendendo os interesses da elite que domina o capital; eu sou um cantor de música regional e, como artista, defendo os interesses de prostitutas, homossexuais, negros, pobres e índios!  
Não contive minha queda quixotesca e, já no avião, parabenizei o artista pelo seu desempenho no debate, convicto de que Roraima me reservaria fortes emoções, além de muitas lições para aprender.   

2 comentários:

Benedito Rodrigues disse...

A viagem já começou bem, né companheiro? Excelente história!

Eliton Meneses disse...

Bem mais emocionante do que eu poderia imaginar, camarada!