Enfim, dei por encerrada a leitura de mais uma grande obra: Recordações da Casa dos Mortos, do escritor russo Fiódor Dostoiévski. Antes mesmo da leitura do livro, já conhecia as suas duas grandes obras-primas: Crime e Castigo (1866) e Os Irmãos Karamazov (1880), escritas em anos posteriores, no mesmo influxo de inspiração que gerou as Recordações, abordando profundamente a temática do cotidiano humano.
Assim sendo, não foi tarefa árdua perpassar as 308 páginas do livro, pois além de grande admiradora de Dostoiévski e de alguns outros grandes escritores russos, aprecio a análise profunda que o autor sempre procura fazer de seus personagens, enfatizando suas angústias, mas também a busca contínua de auto-superação.
À época, Tolstoi disse que as Recordações da Casa dos Mortos era a mais bela obra da nova literatura.
Deixemos os elogios de lado e passemos à análise crítica da obra. Os quatro anos cumprindo pena e submetido a trabalhos forçados na Sibéria serviram de estímulo para que Dostoiévski descrevesse, com extrema autenticidade, as condições de vida no presídio e o caráter dos condenados que ali viviam.
Alieksandr Peitróvitch, protagonista e narrador, relata os seus dez anos passados no presídio, submetido a trabalhos forçados. Cada capítulo retrata o cotidiano da prisão, sem manter uma ordem cronológica rigorosa dos fatos. A Casa dos Mortos, nome atribuído pelo narrador ao presídio, abrigava centenas de homens que viviam em péssimas condições de sobrevivência. O autor descreve minuciosamente as precárias instalações, a superlotação das celas, a falta de higiene e alimentação, o clima hostil extremamente gelado, tudo agravado pelo isolamento geográfico da Sibéria.
Pessoas com naturezas complexas e diversificadas, crimes hediondos praticados sob diferentes formas – o que faz o autor questionar a igualdade de castigos para crimes estruturalmente diferentes –, a desumanidade dos trabalhos forçados, atrocidades praticadas pelas autoridades no presídio, castigos corporais, dificuldade nos relacionamentos sociais – o próprio Alieksandr sofre com isso, pois tinha origem nobre, sendo por tal razão odiado pelos demais presidiários. Enfim, a obra mais parece, além de uma autobiografia, o testemunho da decadência do sistema penitenciário russo, não muito diferente do atual modelo brasileiro, ao menos no que concerne a rebeliões e fugas, convertido notoriamente numa "universidade do crime", incapaz de educar e muito menos de regenerar os detentos.
Muito mais do que o aspecto sociológico, o autor enfoca uma análise profunda no comportamento dos presidiários do ponto de vista psicológico. Vários presos são citados no livro como "bons", portanto, não merecendo tamanha penalidade. "Uma das características dessa gente é a servidão, deixando-se submeter pelos de natureza mais forte, contentando-se sempre com uma condição de segundo ou até mesmo de terceiro plano, tudo em consequência de sua própria índole."
Também há esperança, como se o homem universal almejasse a libertação, com a adaptação do protagonista à vida de recluso e o desejo de que, com o passar dos anos, retornaria livre: "Desde o primeiro dia de reclusão já comecei a sonhar com a liberdade... Cada detento acaba por se considerar na prisão não como morador, e sim como hóspede."
No final, findo o cumprimento da pena, depois de uma análise psicológica dos companheiros e de si mesmo, Alieksandr consegue a tão sonhada liberdade: "Sim, com Deus, liberdade, vida nova, ressurreição dentre os mortos... que inefável momento."
Auricélia Souza Fontenele