sexta-feira, 19 de outubro de 2012

HISTÓRICO JURÍDICO DA QUESTÃO INDÍGENA


Preliminarmente, ao se analisarem os fatos históricos, é preciso ter em mente como vivia o povo da época em análise, quais os seus sentimentos, quais as suas crenças, quais os seus valores. Isso, a nosso sentir, evita julgamentos pré-concebidos, pré-conceituosos. Aliás, o homem é produto do meio em que vive, é produto de seu tempo. Do contrário, iremos cometer o equívoco de julgar nossos antepassados também com o sentimento que nossa cultura atual é mais avançada, é superior a de nossos ancestrais.
A história dos índios no Brasil, desde que os portugueses aqui chegaram, se divide em índios de um lado e os "brancos" do outro. Isto objetivando lançar luzes na poeira do passado no sentido de que a política imperial fora de catequização dos índios, sob o pano de fundo da evangelização, para tanto qualquer ato se justificaria, já que a finalidade era transformar os "selvagens" em cristão.
Com efeito, desde o século XVII, quando foram fundadas no Brasil as primeiras Reduções Jesuíticas, a política oficial era no sentido da necessidade da integração forçada dos índios ao modelo de vida dos colonizadores. Isto porque, dentre outros fatores, imperava a ideia de que os silvícolas era um povo inferior, era um povo pagão. Uma cultura inferior.
Por isso, a educação aos indígenas estava pautada na catequização. Como forma de conseguir tal intento, a Igreja Católica, através dos jesuítas, implementou a política do aldeamento indígena. Para tanto era natural caçar índios como se cassam animais. Era a busca da catequização a "ferro e fogo". Afinal, repita-se, eram pagãos que precisavam conhecer a palavra e os ensinamento de "Nosso Senhor Jesus Cristo". Nesse período de brutalidades, a coroa portuguesa editava as primeiras normas de proteção aos silvícolas, os denominados Alvarás Régios.
Por sua vez, a antropóloga Manuella Carneiro da Cunha sustenta que a soberania indígena e o direito dos índios aos territórios que ocupam são frequentemente reconhecidos nas leis portuguesas para o Brasil, exemplo: Cartas Régias de 30.07.1609 e de 10.09.1611, promulgadas por Felipe III, afirmam o pleno direito dos índios aos seus territórios e sobre as terras que lhes são alocadas nos aldeamentos; Alvará de 1º.04.1680 declara que as sesmarias concedidas por Portugal não podem afetar direitos originais dos índios sobre suas terras.
No Brasil colonial, não se reconhecia o direito à diferença cultural dos índios. A catequização, através de um viés religioso, buscava a assimilação da nossa cultura pelos índios. A catequização dos grupos indígenas, de certo modo, foi instrumento de imposição de valores alheios e negação de identidades e culturas diferenciadas.
Como forma de ilustrar nossa afirmação, segue trecho de trabalho apresentado em outubro de 1997 no XXI Encontro Anual da Anpocs, no GT Educação indígena: diversidade e cidadania, coordenado por Aracy Lopes da Silva e Luís D. Grupione: 
"Entre 1845 e o início do século XX o indigenismo brasileiro viveu uma fase de total identificação com a missão católica. Amparado pela legislação vigente, o Estado dividia mais uma vez os encargos da administração da questão indígena com as ordens religiosas católicas. Dentre elas, a Ordem Menor dos Frades Capuchinhos Italianos, citada no Decreto n. 426, o Regulamento da catequese e civilização dos índios. [...]
Ao Estado cumpria dar apoio estratégico — incluindo a manutenção do aparato militar (os empreendimentos geralmente eram precedidos pela montagem de colônias militares ou presídios) — e financeiro para os aldeamentos indígenas, a maioria deles administrada pelo missionário religioso. Cabia ao governo central regular seu funcionamento, tarefa que cumpria de longe, de diferentes maneiras — por exemplo, pela leitura de relatórios periódicos dos missionários, hoje fonte privilegiada para o conhecimento desse período.
A escola indígena, assim como a vacinação e o socorro nas epidemias, eram prescrições da política tutelar que na maioria das vezes não chegaram a se cumprir. Vacinações não ocorreram, muito menos o controle das epidemias, e elas grassaram nos aldeamentos indígenas, fazendo deste um dos períodos de maior descenso da população indígena em contato com a sociedade nacional." (AMOROSO, Marta Rosa. MUDANÇA DE HÁBITO. Catequese e educação para índios nos aldeamentos capuchinhos. Revista Brasileira de Ciências Sociais.) 
Contudo, na verdade, a interação entre os povos, e não apenas no que tange aos índios, a assimilação é de ambas as parte, não havendo que se falar em cultura predominante. Na cultura brasileira, muito de nossos hábitos atuais são oriundos dos usos e costumes indígenas, por exemplo, a farinha, a tapioca, ou seja, na formação do povo brasileiro, há assimilação de diversas culturas, dentre elas a indígena.
A ideia de isolamento dos índios, assim como a catequização, a integração forçada parecem equivocadas, porquanto não é possível manter o isolamento de um povo de forma indeterminada. É que a reprodução cultural não para no tempo, não é estática, durante a história da humanidade a interação e integração entre os povos segue seu curso natural. Nenhum povo permanece eternamente e integralmente isolado. Ao contrário, terminantemente está contacto com outras formas culturais, mormente através do comércio, na forma mais primitiva do escambo. Nesse processo não necessariamente um determinado povo perde sua identidade cultural. O exemplo típico são os negros, cuja presença cultural continua entre nós, com maior ou menor intensidade, a depender da região do Brasil.
Nesse sentido, colhe-se a preciosa lição de José Afonso da Silva, ao observar que a identidade cultural do indigenato passa por constante evolução, já que inexiste cultura isolada, sua interação com cultura diversa não tem o condão de desconfigurar a identidade de um povo, verbis:
A identidade étnica perdura nessa reprodução cultural que não é estática, não se pode ter cultura estática. Os índios, como qualquer comunidade étnica, não param no tempo. A evolução pode ser mais rápida ou mais lenta, mas sempre haverá mudanças e, assim, a cultura indígena, como qualquer outra, é constantemente reproduzida, não igual a si mesma. Nenhuma cultura é isolada. Está sempre em contacto com outras formas culturais. A reprodução cultural não destrói a identidade cultural da comunidade, identidade que se mantém em resposta a outros grupos com os quais dita comunidade interage. Eventuais transformações decorrentes do viver e do conviver das comunidades não descaracterizam a identidade cultural. Tampouco a descaracteriza a adoção de instrumentos novos ou de novos utensílios, porque são mudanças dentro da mesma identidade étnica.” (SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 24ª edição. São Paulo: Malheiros, 2004, p. 853-854)

José Edival Vale Braga
Procurador do Estado/RR

Um comentário:

Eliton Meneses disse...

Trecho da monografia sobre a INTEGRAÇÃO DOS ÍNDIOS À VIDA NACIONAL, do ex-colega de PGE/RR Edival Braga, com quem "arrancamos", na aurora de 2010, uma histórica liminar no STF para pacificar o conflito fundiário entre índios e não-índios no Projeto de Assentamento Nova Amazônia.