Numa era em que reacionários e conservadores exultam com o estertor do "socialismo real", fingindo olvidar que, enquanto não superadas as causas que lhe deram origem, o socialismo científico será sempre um desafio vivo e recorrente; numa era em que esquerdistas e progressistas, cônscios dos mecanismos da odiosa exploração capitalista, ainda tateiam no escuro no afã de um projeto prático alternativo ao "socialismo real", de preferência que não propenda para o tentador e paradoxal totalitarismo; numa era, enfim, de transição e de muitas dúvidas e incertezas sobre os próximos passos da humanidade, é preciso nos definirmos ideologicamente, porque, se ninguém é obrigado a ser de esquerda, de centro-esquerda, de centro, de centro-direita ou de direita, todos temos o dever de adotar ideias que sejam coerentes entre si e, sobretudo, de termos uma prática coerente com nossas ideias.
No plano das ideias, não somos obrigados a concordar com a pauta inteira da tendência ideológica que mais se afina conosco, desde que tenhamos justificativas plausíveis para as pontuais discordâncias. O jornal Folha de São Paulo disponibiliza na internet um
teste do perfil ideológico que adota como parâmetro dez questões polêmicas, cujas respostas, em conjunto, indicariam a tendência de cada um. As questões dizem respeito a posse de armas, migração, homossexualismo, pobreza, pena de morte, sindicatos, criminalidade, adolescentes, drogas e religião.
Das dez questões, votei em 09 (nove) que seriam da pauta da esquerda e, mesmo sendo favorável à proibição do uso de drogas (pauta da direita [sic]), fui classificado dentre os que se definem de esquerda no Brasil.
Considero que a questão de liberar ou proibir o uso de drogas, de modo genérico, transcende o debate ideológico entre esquerda e direita. Liberar o uso do "crack", a droga mais devastadora da atual geração, por exemplo, seria algo absurdo, pela direita e pela esquerda. A propósito da maconha, se não fosse ela porta de entrada para outras drogas mais pesadas, como a prática tem revelado, poder-se-ia até pensar em liberação, mas sendo, quase sempre, o primeiro passo rumo ao abismo infernal, é preferível que permaneça proibida como está, entre nós.
Uma questão que melhor retrataria o perfil ideológico seria a referente às cotas para negros nas universidades e em concursos públicos, com a qual concordo plenamente, como medida temporária – por algumas gerações – para a correção de uma distorção histórica, com respaldo no princípio constitucional da igualdade material, tratando-se igualmente os iguais e desigualmente os desiguais, na medida de suas desigualdades. Em regra, quem nutre tendência de direita tem assombrosos pesadelos com as cotas.
Outra questão polêmica, não referida no teste, diz respeito ao aborto. A opinião favorável ao direito da mulher de interromper a gravidez é tida, em regra, como uma pauta da esquerda. No entanto, penso que o aborto é outro tema que transcende o debate ideológico entre esquerda e direita. Se considerarmos que a criança é uma pessoa humana não somente a partir do momento em que é retirada do útero, mas desde os primeiros meses de formação intrauterina, teremos que concluir que, na colidência entre o direito à integridade física da mulher e à vida do feto, há de prevalecer a vida do ser humano indefeso e a vedação ao aborto, ressalvados os casos excepcionais, como gravidez resultante de estupro e risco de vida da mãe, em que o aborto já é autorizado por lei.
Há pessoas que não se dão conta do paradoxo de adotarem, por exemplo, uma dieta vegetariana, por piedade aos porcos e galinhas, e, ao mesmo tempo, por fidelidade a uma pauta ideológica, lutarem pela legalização do aborto de uma criança...
A opinião sobre o aborto, no final das contas, diz mais com o valor que se atribui à vida humana, a partir da concepção do seu início, no confronto com a inviolabilidade do corpo da mulher, do que propriamente com esta ou aquela tendência ideológica.