sexta-feira, 31 de janeiro de 2014

RESENHA LITERÁRIA



Veredas Sinuosas é um livro mágico, encantador. À primeira vista, dá uma fome, dessas de devorá-lo por inteiro, mas é uma fome que, tendo sido saciada uma vez, volta a aparecer, porém, de maneira sutil. Assim, ao invés de devorá-lo, a vontade que se tem é de degustá-lo, devagar, pausadamente, numa segunda leitura. Esta pede outra e outra, porque Veredas Sinuosas tem este mistério: primeiro, percebe-se o diálogo entre dois autores nascidos em Coreaú, a 54 Km de Sobral/CE. Um faz prosa e verso com temas voltados para o lado cotidiano, o outro é mais voltado para o ímpeto natural da vida com seus dilemas.
Outro ponto interessante é que, quando um verseja, o outro proseia, enquanto um proseia, o outro verseja e eles seguem viagem por este caminho, mantendo uma harmonia reta, nivelada, pelas sinuosidades da caminhada.
Na segunda leitura, a vontade é de ler cada autor em particular, adentrando no universo de cada um, conhecendo, desta forma, o que cada um pensa de si mesmo, da sociedade, e até mesmo do amor. Impossível resistir e não se fazer companheiro(a) de viagem dos dois. Um livro muito bem elaborado que, pela sua complexidade de ideias, fica superficial demais relatar em poucas palavras as muitas impressões que causa.
Já estou na segunda leitura deste riquíssimo exemplar. A primeira leitura, eu a fiz vorazmente, e já percebi qual era a intenção dos dois caminhantes: o diálogo, a harmonia. Agora, percebo, individualmente, o que minha conversa com cada um me mostra: dois homens, sem sombra de dúvidas, que vieram de caminhos opostos, e que trouxeram para estas veredas, suas experiências de vida.
Ah que todo leitor tivesse o privilégio de fazer o que faço agora: ler não apenas um livro, mas dois autores em suas essências retas por caminhos sinuosos.
"Acaso andarão dois juntos, se não estiverem de acordo?" (Livro do Profeta Amós, Capítulo 3, versículo 3)

Solange Guimarães
Vice-presidente da Academia Aracatiense de Letras

terça-feira, 28 de janeiro de 2014

USUÁRIO x TRAFICANTE


A Lei n.º 11.343/2006 (Nova Lei de Drogas) trata de forma bastante diferente o usuário e o traficante de drogas. Ao passo que para o usuário são previstas apenas sanções suaves como advertência sobre os efeitos das drogas, prestação de serviços à comunidade e medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo, não cabendo mais a prisão (art. 28); para o traficante é prevista a pena de 05 (cinco) a 15 (quinze) anos de reclusão, além do pagamento de 500 (quinhentos) a 1.500 (mil e quinhentos) dias-multa (art. 33). 
Não obstante o fosso legal entre o usuário e o traficante, na prática, a fronteira que separa um do outro é bastante tênue. O art. 28, § 2.º, da Lei de Drogas dispõe que, para se determinar se a droga é para o uso próprio (ou para o tráfico), deve-se atender à natureza e à quantidade de substância apreendida, ao local e às condições em que se desenvolveu a ação, às circunstâncias sociais e pessoais, bem como à conduta e aos antecedentes do agente. De todo modo, a vaguidade desses parâmetros legais torna a prática forense pródiga em incertezas e incoerências. O critério prevalecente tem sido a quantidade, seguido pela natureza da droga apreendida. Quando se apreende, v.g., uma vasta quantidade de pedras de crack, substância potencialmente devastadora, é inexorável o enquadramento no tráfico (art. 33); no entanto, encontrado o sujeito simplesmente com um ou dois cigarros de maconha, quase sempre será tratado como usuário (art. 28). Na ausência de critérios mais precisos para um discrímen, há uma tendência da Justiça em reservar a hipótese do usuário somente para os casos em que a quantidade da droga é quase insignificante, de modo que, se o sujeito compra e armazena, v.g., 50g de maconha para o seu consumo durante uma quinzena, corre ele sério risco, se for pego, de ser enquadrado como traficante.
É preciso muito cuidado, portanto, para que a voracidade do Estado em face do tráfico não acabe apanhando cegamente os meros dependentes químicos para arremessá-los na prisão, ao arrepio da política antidroga instalada pela própria Lei n.º 11.343/2006. 

sábado, 25 de janeiro de 2014

SUCO DE UVA


O estômago rústico de Suco não estava afeito a iguarias refinadas. Depois da entrada com patê de fois gras, a namorada solicitou o prato principal, uma lagosta ao Thermidor, regada com novas taças de vinho Chianti.
Suco não se arriscou na pronúncia francesa da entrada, tampouco fazia ideia do que representara o Thermidor no calendário revolucionário francês. De toda sorte, comeu e bebeu tudo o quanto pôde, tentando debalde dissimular a surpresa de um primeiro almoço num restaurante sofisticado. 
Conhecera a pretendente há pouco mais de uma semana. Seduzido pelos dotes financeiros da moça, Suco, no auge dos seus dezenove anos, resolveu conquistá-la, a despeito das quatro décadas a mais na idade dela. 
Ao final do regabofe, pago no cartão de crédito da namorada, Suco pediu acanhado ao garçom que embalasse as sobras para levá-las para Thor, seu cachorrinho que estava em casa, louco por cauda de lagosta... 
Quando Suco chegou às três da tarde na Casa do Estudante, onde morava, encontrou Alex, seu companheiro de quarto, já pálido e esguio, deitado no beliche, arquejando de fome.   
– Fala, macho véi! Já almoçou?!
– Almoçar o quê, macho? Não tem nada! 
– Então arrocha esta quentinha, cachorro mortafome!

terça-feira, 21 de janeiro de 2014

ALTOS E BAIXOS


EM ALTA


Apesar de todos os pesares, o ser humano, cuja natureza é "capaz de reunir todos os contrastes e de contemplar ao mesmo tempo dois abismos, o do alto, o abismo dos sublimes ideais, e o de baixo, o abismo da mais ignóbil degradação." (Dostoiévski)

EM BAIXA

O preconceito contra os "rolezinhos" da juventude da periferia nos shopping centers do Rio e de São Paulo. Interessante que contra o "rolezinho" dos alunos de classe média da USP, há muito tempo realizado em certo shopping paulistano, nunca ninguém reclamou... Não custa lembrar que vivemos num Estado Democrático, cuja Constituição dispõe que: "Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se (...) a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, (...)" (Art. 5.º, caput, CF/88), sendo ressaltada, aliás, a liberdade de locomoção no território nacional, ou seja, o direito de ir e vir e permanecer (Art. 5.º, inciso XVCF/88). 

EM ALTA

Os defensores dos direitos humanos, que encaram estoicamente o desafio de um tempo sem coração e sobrenadam indiferentes as correntes turvas da incompreensão, com um toque de graça, doçura e esperança. Afinal, "O mal não pode vencer o mal. Só o bem pode fazê-lo." (Tolstoi)

EM BAIXA 

Os presunçosos censores da moral alheia, que reparam no cisco que está no olho do seu irmão e não se dão conta da trave que está no seu próprio olho. "Não julgueis, para não serdes julgados", porque, no irreprochável italiano do prof. Gomes, "con la stessa misura con cui misurerete sarete misurati." (Mateus 7:1-5)

domingo, 19 de janeiro de 2014

A MESMA DE SEMPRE


Estive recentemente na nossa velha e querida Palma (Coreaú/CE), e, então, mais uma vez, notei que praticamente tudo continua como antes na terra de Abrantes, desde os idos do princípio do ano de 1975, quando saí para estudar fora na capital do sol (alencarina), mas com algumas observações nada agradáveis.
Logo cedo da manhã do dia 07 de janeiro, precisando da net para atualização profissional e de notícias nesse nosso mundo globalizado, fui à sede do SINDPROC procurando tal serviço de TI, quando sou surpreendido pelo funcionário que ali estava (desolado e perplexo), em face da visita do amigo do alheio naquela noite ou madrugada, surripiando vários equipamentos eletrônicos, elétricos, digitais, caixa de som etc., impossibilitando a prestação do serviço solicitado pelo consumidor, pois a bagunça estava instalada. A violência não poupa nem o órgão de representação e defesa dos professores. Tive que atravessar a cidade e usar o serviço da "net dos Irineus". Funciona bem e o preço é camarada.
Há alguns anos Coreaú está sem seu matadouro. Isso é fato e já foi denunciado por vários blogues. Isso é muito sério, porque é uma questão de saúde pública. Uma pergunta é inevitável: Que carnes (bovina, suína, caprina etc.) os coreauenses estão comendo? Será clandestina e sem qualquer inspeção sanitária ou vem de outro lugar própria para o consumo humano? O que dizem os órgãos responsáveis (Secretarias Municipal e Estadual de Saúde, MP, Vigilância Sanitária etc.)?
Outra vergonha e até desperdício do dinheiro público é a rodoviária municipal que o Estado nunca acaba e que há anos está com suas obras paralisadas e sem serventia alguma, abandonada, salvo para encontros amorosos etc., segundo foi dito.
Notei o comércio um pouco parado, com pouco movimento. Dizem que é a falta de dinheiro, que teria diminuído muito a sua circulação na cidade, não só pelo aperto do principal banco local (Brasil) após os assaltos, como também da concorrência do município vizinho (Sobral). Isso não é bom. A geração de emprego e renda para os coreauenses, que é bom, parece que ainda não chegou à Palma.
No retorno da net dos Irineus, passei pela Coluna da Hora (localizada na Praça da Matriz da Igreja Nossa Senhora da Piedade – padroeira da cidade), estando pichada e o relógio literalmente fazendo hora (parado há muito tempo, sem manutenção). Se um monumento histórico da principal e mais importante praça da cidade de Coreaú é tratado assim, que dirá o resto?! Será?!
Mas enquanto o comércio reclama, não há crise no setor de transporte (mobilidade urbana) e de comunicação, pois a população circula pela cidade até "altas horas", sobretudo com seus carros, motos e celulares. Ciclistas são poucos.
Mas tive uma grande alegria quando na manhã do dia 08 de janeiro, ao visitar o Ginásio Nossa Senhora da Piedade, vi que após quase 40 (quarenta) anos e algumas reformas, estava ali suspenso, amarelado pelo tempo, mas preservado, o quadro da turma da 8.ª Série (ano de 1974), na parede da sala de entrada do educandário fundado por Dom Benedito.
Espero que nas próximas visitas Coreaú esteja melhor e mais bem cuidado, para a alegria e satisfação dos seus filhos, moradores e visitantes, pois só quem tem a ganhar é a cidade e seu povo.

De Boa Vista/RR para Coreaú/CE, 18 de janeiro de 2014.

Cosmo Carvalho
Engenheiro e advogado

sábado, 18 de janeiro de 2014

VIDA DE REPÚBLICA II


Na segunda semana de febre, cefaleia e fadiga, não suportei ir para a aula. Havia na cidade um surto de dengue que me acometera impiedosamente. Estava na república há menos de um mês e já sentia na pele os desafios da vida coletiva.
Bernaldo concluíra o curso, mas, sem ter para onde ir, com a anuência dos colegas, permaneceu nos fundos da casa, numa cama improvisada, quase ao relento, dando aula particular na residência de alguns poucos alunos e estudando desesperado para a aprovação num concurso público qualquer.
Afinara-me com aquele sujeito experiente, oriundo de um sítio isolado da distante Várzea Alegre, mas a falta de perspectiva estava pondo Bernaldo à beira do desequilíbrio emocional. Quando me viu acamado, pálido e sem ânimo, pela porta entreaberta, deu uma gargalhada confusa e arrematou: 
 Aguenta, fi duma égua! Aqui é cada um por si e Deus contra todos!
À noite, febril e insone, incomodara-me um barulho estranho vindo do quarto do lado. Curioso, dei uma espiada pela fresta da porta trancada que separava os quartos e vi surpreso, a poucos palmos do nariz, Neilson, ofegante, agarrado com outro homem.  
Não ousei interromper as acrobacias eróticas do vizinho. Quando peguei no sono, o dia já começava a clarear.
No meio da manhã, Cabeça chegou, assobiando e estalando os dedos, de mais uma noite de farra e, antes de deitar-se na sua rede armada na sala, ofereceu-me uma cartela de comprimido contra a febre.
Três dias depois consegui, finalmente, restabelecer-me.  

terça-feira, 14 de janeiro de 2014

TENDÊNCIA IDEOLÓGICA



Numa era em que reacionários e conservadores exultam com o estertor do "socialismo real", fingindo olvidar que, enquanto não superadas as causas que lhe deram origem, o socialismo científico será sempre um desafio vivo e recorrente; numa era em que esquerdistas e progressistas, cônscios dos mecanismos da odiosa exploração capitalista, ainda tateiam no escuro no afã de um projeto prático alternativo ao "socialismo real", de preferência que não propenda para o tentador e paradoxal totalitarismo; numa era, enfim, de transição e de muitas dúvidas e incertezas sobre os próximos passos da humanidade, é preciso nos definirmos ideologicamente, porque, se ninguém é obrigado a ser de esquerda, de centro-esquerda, de centro, de centro-direita ou de direita, todos temos o dever de adotar ideias que sejam coerentes entre si e, sobretudo, de termos uma prática coerente com nossas ideias.
No plano das ideias, não somos obrigados a concordar com a pauta inteira da tendência ideológica que mais se afina conosco, desde que tenhamos justificativas plausíveis para as pontuais discordâncias. O jornal Folha de São Paulo disponibiliza na internet um teste do perfil ideológico que adota como parâmetro dez questões polêmicas, cujas respostas, em conjunto, indicariam a tendência de cada um. As questões dizem respeito a posse de armas, migração, homossexualismo, pobreza, pena de morte, sindicatos, criminalidade, adolescentes, drogas e religião.   
Das dez questões, votei em 09 (nove) que seriam da pauta da esquerda e, mesmo sendo favorável à proibição do uso de drogas (pauta da direita [sic]), fui classificado dentre os que se definem de esquerda no Brasil.  
Considero que a questão de liberar ou proibir o uso de drogas, de modo genérico, transcende o debate ideológico entre esquerda e direita. Liberar o uso do "crack", a droga mais devastadora da atual geração, por exemplo, seria algo absurdo, pela direita e pela esquerda. A propósito da maconha, se não fosse ela porta de entrada para outras drogas mais pesadas, como a prática tem revelado, poder-se-ia até pensar em liberação, mas sendo, quase sempre, o primeiro passo rumo ao abismo infernal, é preferível que permaneça proibida como está, entre nós.      
Uma questão que melhor retrataria o perfil ideológico seria a referente às cotas para negros nas universidades e em concursos públicos, com a qual concordo plenamente, como medida temporária – por algumas gerações – para a correção de uma distorção histórica, com respaldo no princípio constitucional da igualdade material, tratando-se igualmente os iguais e desigualmente os desiguais, na medida de suas desigualdades. Em regra, quem nutre tendência de direita tem assombrosos pesadelos com as cotas. 
Outra questão polêmica, não referida no teste, diz respeito ao aborto. A opinião favorável ao direito da mulher de interromper a gravidez é tida, em regra, como uma pauta da esquerda. No entanto, penso que o aborto é outro tema que transcende o debate ideológico entre esquerda e direita. Se considerarmos que a criança é uma pessoa humana não somente a partir do momento em que é retirada do útero, mas desde os primeiros meses de formação intrauterina, teremos que concluir que, na colidência entre o direito à integridade física da mulher e à vida do feto, há de prevalecer a vida do ser humano indefeso e a vedação ao aborto, ressalvados os casos excepcionais, como gravidez resultante de estupro e risco de vida da mãe, em que o aborto já é autorizado por lei. 
Há pessoas que não se dão conta do paradoxo de adotarem, por exemplo, uma dieta vegetariana, por piedade aos porcos e galinhas, e, ao mesmo tempo, por fidelidade a uma pauta ideológica, lutarem pela legalização do aborto de uma criança...    
A opinião sobre o aborto, no final das contas, diz mais com o valor que se atribui à vida humana, a partir da concepção do seu início, no confronto com a inviolabilidade do corpo da mulher, do que propriamente com esta ou aquela tendência ideológica. 

sábado, 11 de janeiro de 2014

CIDADE MARAVILHOSA



Não há no mundo uma cidade que reúna uma simbiose tão perfeita entre a obra humana e a paisagem natural quanto o Rio de Janeiro. Soerguida entre o mar azul pontilhado de ilhas e um emaranhado de montanhas com vegetação nativa surpreendentemente preservada, a "cidade maravilhosa", malgrado as disparidades sociais gritantes, continua repleta de encantos; uma pintura para encher os olhos de qualquer um. Não é à toa que, no dia 1.º de julho de 2012, tornou-se a primeira cidade do mundo a receber da Unesco o título de patrimônio cultural da humanidade. 



Um momento mágico da nossa recente visita à cidade do Rio de Janeiro: a subida do Corcovado, de trem, ao som do autêntico samba carioca.

terça-feira, 7 de janeiro de 2014

SER E TEMPO – HEIDEGGER


No universo do conhecimento, há alguns sujeitos que conseguem promover uma mudança radical de perspetiva que torna obsoleto todo um arcabouço conceitual. Na astronomia, coube à teoria heliocêntrica de Copérnico retirar a Terra do centro do Universo; com a teoria da evolução das espécies, fundada na seleção natural, Darwin aplicou um duro golpe no criacionismo, abrindo um novo horizonte para a biologia. Com o materialismo histórico, baseado na luta de classes decorrente da "exploração do homem pelo homem", Marx lançou luzes novas que mudaram as cores, a um só tempo, da sociologia, da economia e da história. Na filosofia, coube a Heidegger a realização desse giro radical.
Em "Ser e Tempo", Heidegger trata de maneira original de uma das mais antigas e relevantes questões da filosofia: a natureza do ser. A existência é o fenômeno que a filosofia chama de "ser". As coisas que "são" são aquelas que "existem"; as que "não são" são as que "não existem". Mas o que significa existir e não existir?
Heidegger afirma que, desde os gregos, a tradição filosófica sempre identificara o ser como a presença no mundo. Assim, ser era estar presente no mundo e não ser era não estar presente no mundo. No entanto, para ele, incorria-se num equívoco, porque a presença, como possibilidade de ocupar lugar no espaço e no tempo, respondia à questão do ser partindo de um ente em especial, ou seja, os objetos materiais, como mesas e cadeiras, propondo o filósofo que a resposta à questão do ser deveria perscrutar, em primeira mão, aquele ente que é o único que se pergunta sobre o ser, ou seja, o homem. Desse modo, em vez de se partir das coisas para se determinar o ser de todos os entes, inclusive o homem, Heidegger propunha partir do homem para determinar o ser de todos os entes, inclusive as coisas.
O ser do homem não consistiria numa simples presença no mundo, mas num Ser-aí (Dasein), que poderia ser definido como um projeto indefinido, autodirigido e perpetuamente inacabado, sujeito a três condições: (i) o ser-no-mundo, pertinente à facticidade, ou seja, à possibilidade, direcionalidade e limitação que o mundo em volta do homem exerce sobre suas projeções; (ii) o ser-com-os-outros, tocante ao conjunto de imagens e motivos previamente existentes e no qual inexoravelmente ele mergulha ao integrar o mundo social e (iii) o ser-para-a-morte, que parte da compreensão de que a consciência e a certeza de uma morte certa em data incerta é que pressiona todo o período de vida a ser constantemente a realização de um projeto, tendo na angústia, experiência existencialmente libertadora que irrompe de tempos em tempos, a lembrança da condição efêmera do Ser-aí.
Se, na tradição ocidental, desde os gregos, o tempo, como propulsor da mudança, havia sido sempre pensado como aquilo que é contrário ao ser (inspirado no ser dos entes imutáveis que são as coisas), a partir da reflexão de Ser e Tempo, era possível encarar o tempo como a condição sem a qual não existe o ser, a partir do ser do ente que se pergunta sobre o ser, ou seja, a partir do homem. Só no tempo é que o Ser-aí pode se projetar, só no tempo é que pode se enfrentar com o mundo em busca de seu projeto, só no tempo e na consciência do tempo e na certeza da morte, é que o homem pode reencontrar o sentido de Ser-aí para além de toda ilusão ou esquecimento. 

sábado, 4 de janeiro de 2014

MENINO DO MORRO



O menino desceu o morro,
Nos braços do anjo torto,
Com o riso largo no rosto,
Rumo à festa do réveillon.
Iria reencontrar sua praia,
Depois das dores sentidas,
Da bala perdida que levou.
Ia cantando samba antigo:
Acreditava ainda na vida,
Também na alegria de ser,
Apesar do mundo moinho
Reduzir-lhe a ilusão a pó.
Ninguém ainda lhe contara
O dia que firmaria o passo;
Preso à cadeira de rodas;
A mãe somente lhe dissera:
A curva é a mente que faz.
O vento que varre sua face
É um sopro de esperança,
A luz que alumia a estrada
Da existência que se refaz.
Há  fogos no céu estrelado;
Há sonho sempre renovado
E o sorriso inocente da paz!

Eliton Meneses