quarta-feira, 31 de julho de 2019

Frase do mês


"Há um certo número de coisas que não podemos atingir a não ser dando deliberadamente um salto na direção contrária. É preciso partir para o estrangeiro, a fim de encontrar a pátria que abandonamos." (Franz Kafka)

Canto


Canto, porque não esmorece a vontade de cantar.
O sonho ainda existe, o canto ainda insiste.
Não vai ser uma nuvem que nos vai fazer parar.
Saímos de uma seca, um verão escabroso,
Deixemos as pegadas no solo pantanoso,
Será a contragosto, inverno rigoroso, mas será muito afoita a coragem de plantar.
Cruzada num inferno, diabos pavorosos,
Cruzados corajosos no outono vão chegar.
Depois a nova era, virá a primavera,
Será vencida a fera e as flores da justiça irão enfim brotar.

Eliton Meneses

1.ª Pessoa


A morte não causa espanto,
Há mortos por todo canto.
Pouco importa a lei de Deus,
Basta não ser um dos meus.
Vosso reino venha a nós,
Todo aquele que tem voz.
Muito limpo o palacete,
Salvo embaixo do tapete.
Possuía tanta cousa
Quem sequer lavava a louça.
Sentada na penteadeira,
Sonhava a moça faceira.
A estranha de cocó
Vai morrer no caritó.
Vão entrar em simbiose,
Logo após mais uma dose.
Empregaram mil fatores,
Disfarçando as suas dores.
Prometera doravante
Ser melhor a todo instante.

Eliton Meneses

segunda-feira, 29 de julho de 2019

Cotidiano


Acorda insone.
O sol já anda alto.
A água do banho não aquece.
Gravata, para quê gravata?
Onde estará a camisa passada?
Esqueceram de passar a camisa.
O aroma do café já não traz recordação.
A música, melhor fechar o rádio.
O leite frio não adoça o café morno.
O carro não pega, deve ser bateria de novo.
Tudo tão caro, o custo de vida, tanta conta...
O transporte púbico, que droga, tanta gente amontoada.
Todos tão pacientes, sem pressa em meio à cidade com pressa.
 O troco, senhor! — Que troco? Paguei no cartão.
— Não aceitamos cartão...
O trabalho, que tédio!
O chefe tem cara de poucos amigos.
Sim, senhor. É essa mesma. Três meses de garantia.
Quanto tempo falta para o almoço?
Alguém no telefone, de novo o telemarketing.
Comida sofrível, a sobremesa por favor.
Era preciso trocar a escova.
Que palidez! Esse espelho emagrece ou engorda?
Oi! Não. Encontro, hoje à noite?
Não posso. Estou fechado para balanço...
Passava a roupa tão bem...
Que cliente chato!
Que horas é o café?
O colega relata sua vida.
A filha vai ao médico.
O filho vai mal na escola.
Tudo parece tão distante.
A mulher ao menos ainda passa a roupa.
Fim de expediente. Graças a Deus!
De novo o coletivo.
Um cego pede esmola.
Para quê tanta parada?
A rua está escura.
Um cachorro late solitário.
Onde estará a chave?
Antes era tudo tão mais simples.
O jornal, a novela... As mesmas notícias de sempre.
O que fazer para o jantar?
Sardinha, miojo, um resto de vinho...
Amanhã começaria tudo de novo.
Sábado será a visita.
Os meninos hão de ficar bem.
Dessa vez não haverá retorno.
A pensão, metade das férias...
Tinha que aprender a viver só.

Eliton Meneses

domingo, 28 de julho de 2019

Humilhados e ofendidos : Dostoiévski


"— Não sei, Natacha. Nesse homem tudo é inexplicável. Quer casar-se com outra e amar-te a ti. Ele é capaz de tudo ao mesmo tempo."

"E finalmente, essa qualidade dos seres ingênuos, que talvez lhe viesse do pai, de apreciar uma pessoa, considerando-a por melhor do que verdadeiramente é e exagerar exaltadamente tudo quanto tem de bom, tinha-se desenvolvido nela num grau violento. A essas criaturas custa-lhes depois muito refazerem-se da sua desilusão e ainda mais quando sentem que são elas mesmas as culpadas. Para quê esperar de uma pessoa mais do que aquilo que ela pode dar?"

"O tempo... é a melhor solução para tudo."

"Em certos casos o dinheiro proporciona-nos uma posição independente, prepara-nos para procedermos com liberdade."

"— Olhe, há pormenores insignificantes e que no entanto servem para caracterizar um homem."

«O principal não é a inteligência, mas sim aquilo que a rege... A natureza, o coração, as nobres qualidades, a cultura...»

"— mas não basta a inteligência, também é preciso coração para uma pessoa não se deixar enganar."

"Aquela ingênua duplicidade da criança e da mulher que pensa, aquela ânsia infantil, e absolutamente sincera, de verdade e justiça, a sua fé inquebrantável nas próprias aspirações, tudo isso parecia iluminar-lhe o semblante com um certo fulgor de sinceridade, muito belo, e comunicava-lhe uma espécie de suprema beleza espiritual." 

"Eram mais «iguais» entre si, e isso é o essencial."

"Mas repare no que lhe digo: se fosse possível (o que, claro está, não será nunca, dada a natureza do homem), se fosse possível que cada um de nós escrevesse todos os seus pensamentos, mas sem recear desvendá-los — não só o que se receia dizer e por nada do mundo se diz aos outros, não só o que se não diz ao amigo mais íntimo, mas até aquilo que uma pessoa se não atreve a dizer a si própria —, então, creia-me, levantar-se-ia no mundo tal cheiro pestilencial que todos deitaríamos a correr, sufocados. E é por isso, diga-se entre parênteses, que as nossas convenções e o decoro mundano nos são precisos."

(Fiódor Dostoiévski. in Humilhados e ofendidos) 

sexta-feira, 26 de julho de 2019

Soneto LXXVI


Cangaceiros sedentos de vingança;
Coronéis que faziam a própria lei;
A miséria roubava a esperança;
As volantes corriam atrás do rei.

O sertão sem vestígio de mudança,
Padecendo a agrura a pobre grei,
Desolada na fé, sem segurança,
Esperava a missão de mais um frei.

Estilhaço de sonho em toda parte;
A poeira, o sol quente, a vida, a arte;
Tanta cruz que fincava o duro chão.

Almas vivas cantavam em romaria,
Ecoando o dizer da profecia:
Quem espera vê luz na escuridão.

Eliton Meneses

terça-feira, 23 de julho de 2019

Freud explica


"Mas então acontece que a pessoa odiada atraia sobre si um desgosto bem merecido devido a alguma transgressão; então posso dar livre curso à minha satisfação por ela ter sido atingida pelo justo castigo, e nisso me exprimo em concordância com muitos outros que são imparciais. Porém, posso observar que minha satisfação é mais intensa do que a dos outros; ela recebeu um reforço oriundo da fonte do meu ódio que até então estava impedido pela censura interior de fornecer afeto, mas que não é mais impedido de fazê-lo nas novas circunstâncias. Isso geralmente ocorre na sociedade quando as pessoas antipáticas ou membros de uma minoria malvista cometem algum delito. Assim, sua punição não corresponde habitualmente à sua falta, e sim à falta acrescida da hostilidade, até então sem efeito, dirigida contra elas. Os punidores sem dúvida cometem uma injustiça nesse caso, mas são impedidos de percebê-la devido à satisfação que lhes proporciona o cancelamento de uma repressão longamente mantida em seus íntimos. Nesses casos, o afeto sem dúvida é justificado segundo sua qualidade, mas não segundo suas proporções; e a autocrítica tranquilizada quanto ao primeiro ponto negligencia com muita facilidade o exame do segundo. Uma vez aberta a porta, facilmente forçam passagem por ela mais pessoas do que de início se pretendia deixar entrar." (Sigmund Freud. in A interpretação dos sonhos)

quinta-feira, 18 de julho de 2019

Lampião


Andei muito, vi santos, vi a lenda;
Arco-íris depois de um sereno;
Vi a tarde cair num sol ameno
Da porteira encurvada da fazenda.
Percorri taciturno a mesma senda
De um rei que vagou pelo sertão,
Com Maria e Corisco, a tradução
Da coragem do povo nordestino;
A memória que guardo de menino,
Virgulino Ferreira, o Lampião.

Vi Piranhas depois de muitos anos;
O parente inda vivo do coiteiro;
Descobri como veio sorrateiro
João Bezerra, depois de muitos planos;
Como foram gerados tantos danos,
Na manhã que raiou como trovão.
Vi a grota em que jaz o Capitão;
Tanto sangue no leito desaguar;
Vi o rio na seca virar mar
E também vi o mar virar sertão.

Eliton Meneses

segunda-feira, 8 de julho de 2019

La coscienza di Zeno : Svevo


"La vera schiavitù è la condanna all'astensione: Tantalo e non Ercole."

"È un dubbio che m'accompagnò per tutta la vita e oggidí posso pensare che l'amore accompagnato da tanto dubbio sia il vero amore."

"– La vita non è né brutta né bella, ma è originale!"

"La mia cura doveva essere finita perché la mia malattia era stata scoperta. Non era altra che quella diagnosticata a suo tempo dal defunto Sofocle sul povero Edipo: avevo amata mia madre e avrei voluto ammazzare mio padre."

"Nella psico-analisi non si ripetono mai né le stesse immagini né le stesse parole. Bisognerebbe chiamarla altrimenti. Chiamiamola l'avventura psichica. Proprio così: quando s'inizia una simile analisi è come ci si recasse in un bosco non sapendo se c'imbatteremo in un brigante o in un amico. E non lo si sa neppure quando l'avventura è passata."

(La coscienza di Zeno. Italo Svevo)