Se tem algo de que me ufano é de ter nascido em Coreaú. Tem gente que nasce num canto e diz que nasceu noutro, mais importante. Para mim o canto mais importante do mundo é Coreaú. Quando pego o RG e vejo na naturalidade Coreaú-CE, me sinto especial. Não queria ter nascido em outro canto. Coreaú já se chamou Várzea Grande, por se situar num belo vale entre as serras da Meruoca e da Ibiapada; em 1870, passou a denominar-se Palma, por conta de uns bolinhos de goma em forma de 'palma' feitos por lá, até que, em 1943, passou a chamar-se Coreaú, em homenagem ao rio que corta o município. Coreaú significa, no tupi, bebedouro dos curiás, uma pequena ave que devia povoar os arredores do rio noutros tempos. A mudança de Palma para Coreaú não foi nada fácil. Pensou-se em Penanduba, uma pequena serra localizada no centro do município, mas o nome Penanduba desagradou os ouvidos sensíveis de algumas pessoas e, no final, decidiu-se mesmo por Coreaú. Teve um sujeito que ficou tão revoltado com a possível mudança do nome da Palma para Penanduba, que morreu com o apelido de Penanduba... Em verdade, a despeito da mudança, Palma segue como o nome afetivo da cidade. Todo mundo ainda fala 'sou da Palma', 'vou pra Palma', 'lá na Palma que é descente'. A Palma, ou Coreaú, em termos geopolíticos, não passa de um pequeno município do Noroeste do Ceará com alto índice de pobreza e parado no tempo. Então, por que me ufano de ter nascido lá? Um poeta chileno escreveu que: "La única calle de mi pueblo llega a todas partes." Talvez seja em alguma medida por isso, mas, rebuscando meu inconsciente, suspeito que o ufanismo decorra predominantemente de outra razão. É em Coreaú que estão aqueles gigantes que povoam o meu imaginário, mitos reais, almas grandes que conheci de perto e com as quais convivi. Não são políticos ou figuras que se deram bem na vida, são pessoas do povo, cujo diferencial estava na própria essência. Quatro desses gigantes são: Vicente Chico, Dona Benícia, Tereza Portela e Pedro Faustino. Essas pessoas são mais relevantes no meu imaginário do que Raskolnikóv ou Aliócha Karamazov, a despeito de toda a devoção que tenho por Dostoiévski. Vicente Chico foi o rei do Leruá, moreno claro, alto e magro, alegre, irônico, de porte elegante, chegado a uma dose (...), bastava vê-lo para saber que não se tratava de uma pessoa comum. Sempre que encontrava Vicente Chico, mesmo em condições adversas, ele bêbado, falando um monólogo incompreensível, surrado pela vida, eu sentia que estava diante de alguém muito importante. Tenho até a impressão de que ele sabia dessa importância. Um dia, no Norte do País, muito distante da Palma, alguém tentou desfazê-lo e ele saiu com essa: "— Você sabe com quem está falando, rapaz? Aqui é o Vicente Chico, campeão do Leruá da Serra da Meruoca e de toda região!" Vicente Chico tinha consciência de que era um gigante. Dona Benícia não sei se sabia, mas, sabendo ou não, foi a figura feminina mais marcante que encontrei na vida. Morena clara e baixa, um pouco forte, era a alegria em pessoa. Expansiva, festiva, criativa, cozinheira de mão-cheia, andava sempre cantando, mesmo nos dias que não tomava uma dose na esquina. Criou os filhos sozinha, com o humor nas alturas, apesar das dificuldades da vida. Quando morou no casarão de Dona Filozinha e impediram-na na última hora de realizar o São João, chamou todo mundo para fora e fez a festa no meio da rua. Dona Benícia era uma alma grande. Sempre que havia os passeios da 8.ª Série no final do ano, convidavam-na para cozinhar, mas sobretudo para alegrar a viagem. Dona Benícia fazia parte do trio que, reunido na esquina, gargalhava junto para a cidade inteira ouvir. As outras duas do trio eram Dona Artemiza (que chorava de rir) e Regina Guedes, que contava a parte mais sórdida das estórias. Quando Dona Benícia morreu, sua alma foi despedir-se de mamãe, que estava no Rio visitando uma filha. Tereza Portela ainda usava anáguas, conheci-a já idosa, morena magra e baixinha, cercada de mistérios e que adorava vagar pelas ruas. Assumia possuir poderes sobrenaturais. As mães corriam com as crianças recém-nascidas para que Tereza não as visse. O quebrante era certo. Quase ninguém ousava contrariá-la. Praga da Tereza era tiro e queda. Seu Benedito Mussum que o diga. Um dia foi enxotá-la do seu bar e morreu pedindo esmola na feira do domingo. Era a única pessoa da Palma que jamais entrou na igreja. Fugia da missa como o diabo foge da cruz... As brigas da Tereza com a vizinha Consuelo foram, para mim, muito mais importantes do que qualquer outro grande confronto pessoal registrado na história. Tereza ousava invadir a calçada da adversária. Ia até a janela dela, esquivava-se do tabefe e voltava dançando, sob os aplausos da plateia eufórica. A última vez que vi Tereza, já debilitada, ela recebeu um agrado — adorava que molhassem sua mão — e disse que, ainda que as pessoas não achassem, ela me achava o filho mais bonito do Oneon. Fiquei tão feliz que dei o resto do meu dinheiro para ela... Pedro Faustino ou simplesmente Pedão era um negro alto e malandro da rua do Cemitério. Gostava de beber e de brigar. Sua arma secreta não era o soco nem o chute, era a testa. Isso mesmo, a testa; segundo ele mesmo, feita de platina. Dizem que matou um de uma testada. Bom contador de história, queria levar vantagem em tudo e era muito carismático. A voz do Pedão era melodiosa; falando — nunca o vi cantando —, era parecida com a dos negros clássicos do jazz. Contam que Pedão morreu, foi até às portas do céu, mas São Pedro o teria barrado ao se espantar com os muitos pecados de sua vida. Indignado, protestou com São Pedro, que, tentando acalmá-lo, o tratou por Pedim, mas o malandro retrucou ainda mais revoltado: "— Pedim, não! Pedão!"
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