quarta-feira, 31 de maio de 2017

FRASE DO MÊS


"Aquele que luta com monstros deve acautelar-se para não tornar-se também um monstro. Quando se olha muito tempo para um abismo, o abismo olha para você." (Nietzsche)

"Wer mit Ungeheuern kämpft, mag zusehn, dass er nicht dabei zum Ungeheuer wird. Und wenn du lange in einen Abgrund blickst, blickt der Abgrund auch in dich hinein." (Nietzsche)

TRABALHO


A moça nutria sinceras esperanças de que traria seu amor de volta. Seis meses de economia para pagar o trabalho não seriam em vão. A fama de Pai Jucid corria o mundo. O homem era careiro, mas era botar o feitiço e esperar, que era tiro e queda.
Pai Jucid deu uma baforada, borrifou de cachaça o terreiro clareado por muitas velas de sete dias, entrou em transe e, com uma voz cavernosa, dirigiu-se à moça.
– Hum! Diga, menina, o que é que cê deseja?
– Neste terreiro o senhor não trabalha com galinha, não?
A indagação quase tira Pai Jucid do transe. 
– Não, minha fia! Com galinha o trabalho é mais caro... Qual é mesmo o seu problema?
– Eu queria trazer o meu marido de volta. O safado me deixou há seis meses por uma amante horrorosa. Mas antes, seu menino, o senhor sabe, o trabalho foi tão caro, passei seis meses economizando... antes, queria que o senhor me revelasse um outro segredo... coisa pouca. É que terminei há quatro anos o curso de Direito e ainda não realizei o sonho de ser advogada; aí, queria saber do senhor como é que faço pra passar no exame da OAB...
Pai Jucid conteve-se, deu outra baforada, olhou no fundo dos olhos da moça e perguntou:
– O que é OAB, minha fia?
– O senhor não sabe? – respondeu surpresa a moça.
– Quem pergunta quer saber...
– É Ordem dos Advogados do Brasil.
– Ah, tá certo. Negócio de prova só vai mesmo estudando, minha fia...

sexta-feira, 26 de maio de 2017

SONETO XXII


Era uma vez um pássaro perdido,
voando a esmo no universo infindo;
sem nem saber aonde estava indo; 
em cada asa um coração partido.

Também não sabe donde vem fugido;
se nalgum canto ele será bem-vindo; 
quando mais tarde o voo der por findo,
fará repouso em qualquer chão batido. 
 
Foi-se meter à beira do abismo,
trazer do fundo o seu paroxismo,
por uma estrada pouco iluminada.

Acreditara no fugaz instante,
 se fez espelho de um ébrio errante,
ao dar valor ao que não fora nada. 

Eliton Meneses

sábado, 20 de maio de 2017

NONATO


Num mundo, em regra, tão egoísta como o nosso, é sempre importante ressaltar o encontro com pessoas altruístas. Em Coreaú, ainda menino, encontrei uma delas. Nonato estudara para ser padre. No seminário de Recife, porém, viu o que não gostaria de ver e, decepcionado, largou a vida religiosa. Arranjou um emprego público, mas, pouco tempo depois, com o juízo avariado, voltou para Coreaú ainda jovem e aposentado.     
Como muitos outros meninos da minha geração, sentava toda noite no banco da Praça da Matriz para conversar com o Nonato, que, entre um cigarro e outro, contava-nos a sua vida. Interessava-me especialmente a parte do seminário. Os meninos arregalavam os olhos espantados com os episódios inusitados narrados pelo ex-seminarista, mas, quando ele falava da filosofia, do latim e da teologia que aprendera no seminário, apenas eu costumava ficar para ouvi-lo...    
Nonato era solteiro, vivia com a mãe e tinha três prazeres na vida: o primeiro era conversar toda noite com a meninada na praça; o segundo era fumar duas carteiras de cigarro por dia – fumava, mas não tragava, fazia questão de ressaltar – e o terceiro era distribuir seu aposento, logo que o recebia, com os meninos com quem conversava. Nessa divisão, adotava alguns critérios. Um deles era a carência da família do menino. Fiquei a meio caminho entre os que ganhavam mais e os que ganhavam menos. 
A mesada do Nonato era minha única fonte de renda. Com ela troquei o conga da escola, comprei o primeiro livro, paguei o conserto da bicicleta do meu pai... Fui embora aos quinze anos para Fortaleza, mas o Nonato continuou passando todo mês na porta de casa para deixar com minha mãe aquele dinheiro, até que, anos depois, a família o levou, já doente, para a capital.
Nonato acaba de falecer. Morreu como um pássaro, sem agonia, durante o sono da madrugada. Para pessoas como essa, que tanto fez o bem sem receber nada em troca, o que dizer num momento de partida? Além de muito obrigado, que vá em paz e receba em dobro, no Reino dos Céus, todo o bem que fizeste na vida.

DIRETAS, JÁ!


Renúncia é ato de grandeza. Esperar um ato de grandeza de um sujeito como o Temer seria muita ingenuidade.
Temer se agarra ao cargo de presidente como o náufrago se agarra à tábua de salvação. Enquanto for presidente, não será preso. Nessa busca desesperada por salvar a própria pele, mergulha o país no caos.
Alguns ratos já começaram a abandonar o barco, que, à deriva, começa a afundar. Se a moda pega, Temer não resistirá aos próximos dias. Enquanto permanecer, apenas aprofundará o caos.
Eventuais eleições indiretas não resolverão a profunda crise instalada no país, porque quem for eleito por esse atual Congresso não será muito diferente do Temer. A única saída para a crise seriam as eleições gerais diretas, mas isso dependeria de um ato de grandeza do Congresso Nacional. Ora, esperar um ato de grandeza desse Congresso é o mesmo que esperar um ato de grandeza, como a renúncia, de um sujeito como o Temer...
O cenário é assombroso!
Apertem o cinto que a turbulência político-econômica ainda vai longe!

sábado, 13 de maio de 2017

HAICAIS


i.
O galo cantou.
Era ainda madrugada,
Mas já clareou.

ii.
Minha Cajuína,
Esta vida é mais complexa
Do que se imagina.

iii.
Aquela saudade,
Que bateu naquela tarde,
Era de verdade. 

iv.
Oh! beleza humana,
A vontade era seguir-te
Além do nirvana.

v.
Serás responsável
Pelo afeto que se achega
Tão insofreável?

vi.
Dizem que é pecado;
Cada qual com seus deveres,
Mesmo enfeitiçado.

vii.
Hás de transcender,
Pois as regras desta vida
Fazem padecer. 

Eliton Meneses

sexta-feira, 12 de maio de 2017

MINHA CONTRIBUIÇÃO


Prezadíssimo Francisco Eliton,

Ou simplesmente Chico, tratamento amistoso que o longo tempo de convívio diário, trabalhando juntos na mesma sala exígua que compartilhamos durante anos no serviço público federal, e a intimidade das cervejadas nas sextas-feiras dá-me a liberdade de utilizar. Presenciamos os sucessos – e por vezes insucessos – um do outro, amparamo-nos reciprocamente até que caminhos profissionais diversos nos portaram por outras estradas, cidades e estados... Mas a amizade perdurou. Acho que a mudança foi boa para nós dois como profissionais e como pessoas. A vida pode nos levar para lugares nos quais nem sonharíamos estar... O tempo que nos levou também nos trouxe de volta à terrinha.

Como dividimos, também, o estudo da bela língua italiana, posso, ademais, tratá-lo por fratello Francesco, assim como os confrades de São Francisco, o poverello d’Assisi, tratavam o santo italiano quando de sua passagem pela terra. Franciscos que somos nós ambos – e santos! (parece-me) – creio que já começamos a trilhar o mesmo caminho... não sei se devemos é nos prosternar como um beguino, para lermos as mensagens um do outro. Isso talvez chegasse às raias da heresia, o que nos condenaria às penas eternas e ao inferno, a despeito das ótimas companhias que, segundo pretendem alguns, devem perambular por lá, não haverá de ter, seguramente, o clima igual ao das paragens celestiais. Prefiro, assim, manter-me no recomendável caminho da prática das virtudes (credo).

Escrevo esta mensagem, a seu pedido, para que poste em seu blog. E foi buscando um tema mais candente para discorrer sobre ele, que me veio a ideia de escrever sobre mim mesmo, já que a passagem do tempo nos faz mais voltados para nós próprios, algo saudosos do tempo e das pessoas que já se foram... As reminiscências brotam com uma facilidade comovente! Descobri que é bom entrar na idade madura e pretender ir dela para a velhice. Já nos disse certo amigo comum, que só não fica velho quem morre jovem... Isso me parece assaz consolador! 

Nossa festejada – e pranteada – Rachel de Queiroz escreveu que a juventude é a etapa mais angustiante de nossas vidas, porque nada temos naquela altura, suspiramos por tudo, investimos contra a vida para conseguir o que queremos e, quando obtemos, nos entediamos... para partirmos em busca de outros sonhos e assim por diante até aportarmos na idade madura. Se bem que nossa escritora maior, com o tempo, parece ter repensado sobre isso, porque vi-a, certa feita, também afirmar que a velhice é muito ruim: o cabelo embranquece, caem os dentes...os amigos começam a morrer.

Certa escritora estrangeira, cuja nacionalidade agora não me ocorre com certeza, parece-me que austríaca, já disse que na juventude aprendemos, na velhice entendemos... Ambas as escritoras – a alienígena e a cearense – têm razão cada uma a seu modo. O facto é que a velhice, além da cor dos cabelos (que não é tão repulsiva assim), a situação desconfortável dos dentes que vão perdendo a solidez, de certa flacidez dos músculos, da significativa dificuldade para satisfazer as animações sexuais, ainda nos surripia, nomeadamente nos homens, a paciência.

É consabido, mormente por quem me conhece, que a mansuetude nunca foi uma de minhas virtudes mais notórias – e cultivo algumas, malgrado a imodéstia – porém surpreendo-me amiúde sendo rabugento. Isso, sim, causa-me certa repugnância, porque a figura do velho ranheta, possuído de um mau humor desmedido, não é o paradigma no qual pretendo me espelhar quando a senectude chegar. Deus me livre!

Desejo possuir, convictamente, o ar sereno e imponente que ostentava meu tio-avô, a quem aprendi a admirar desde a infância, o qual matinha um porte ereto, quase majestoso – como a mor parte das pessoas de sua geração –, apoiando-se garbosamente numa lustrosa bengala, trajando terno de linho impecavelmente engomado, amarrotado ocasionalmente pelo uso, gravata borboleta, um vistoso chapéu de massa, portando sempre um irrenunciável charuto que fumava com pachorra, prorrompendo, entre uma baforada e outra, numa tosse rouca, tudo emprestando-lhe um certo ar de distinção e nobreza conforme com os padrões da época. Ou, também, como certo coronel aposentado, personagem de Machado de Assis, a quem o grande escritor descrevia como uma ruína magnífica!

A medicina agora cobra mais movimento, contudo nunca tive muitos pendores para a saudável prática dos esportes. Na idade madura, carrego, literalmente, o pesado fardo de um corpo não muito aquinhoado com os adornos de belas formas ou músculos excessivamente viris. O que me socorre, diz-se, é um certo charme, forma, me parece, eufêmica de chamar alguém feio de simpático. Tenho, todavia, boa compleição física e ousaria dizer que represento bem a raça masculina, embora não seja um de seus mais deslumbrantes exemplares.

                                   O fato inconteste é que jamais me dediquei de corpo e alma a nenhuma atividade esportiva com o devido afinco. Confesso que nos tempos de colégio, premido por decisões políticas à época implementadas com fervor pelos diretores de escola, fui forçado, como a mor parte dos alunos, à prática da educação física, como se chamava então, expressão que substituía outra ainda mais genérica, dita ginástica, as quais não definiam, com a especificidade desejada, o tipo de atividade que nos era imposta. Paulatinamente, éramos levados a realizar algum tipo de atividade desportiva (a palavra desporto sempre me pareceu mais nobre que a singela denominação de esporte).

                                  Tentei, heroicamente, jogar futebol, mas conseguia somente vagar desgraçadamente pelo campo, à espera da indigitada bola que nunca, ou raramente, me caía aos pés. Isso só acontecia quando algum dos contendores, mais desavisado, me endereçava a pelota, a que eu tentava, desnorteado, dar um rumo. Tive que me contentar em ficar no banco de reserva, porque minha atuação foi considerada como pouco técnica, além de um espetáculo aflitivo de se ver. Se bem que, certa feita, num ato inesperado e contando com uma considerável dose de sorte, consegui efetuar uma espetacular defesa no gol: rendeu-me um polegar machucado por vários dias, muito embora a glória do feito tenha arrefecido as dores e o inchaço da mão.

                                   Empreendi uma campanha menos desacreditada no hand ball, que eu jogava com amigos da rua, nas calçadas do bairro, por mero diletantismo. Na adolescência, houve algumas outras modalidades esportivas de permeio, inclusive uma breve incursão pelo caratê, que me deu mais segurança e me outorgou um certo ar mais desafiador para enfrentar as lutas da vida. Nunca fui afeito a violências e esse esporte, embora pareça rude ou de duras técnicas, nada tem, em sua essência, de brutal ou feroz, ao contrário, infunde mais confiança em seus praticantes. Há um vago alento de dança misturado com defesa própria, tudo em muita harmonia com as lutas naturais dos seres vivos... O mau uso dessa arte marcial não a desqualifica, como o uso do avião nas guerras, embora tenha deixado contristado o inventor, não diminuiu a importância do invento.

Fui mesmo uma criança cheia de energia, que perambulava pelas ruas do bairro com outros companheiros, à caça de passarinhos ou incautos insetos que se deixavam pacificamente aprisionar por nossas mãos ávidas de aventura. Construíamos cabanas em terrenos baldios, subíamos em árvores, palmilhávamos cada canto de ruas, terrenos e arrabaldes, respirando a plenos pulmões, em grandes haustos, o limpo ar dos tempos de pouca poluição. Tudo isso conferiu-me uma saúde considerável, boa disposição e muito entusiasmo para viver bem.

Como cresci numa chácara, aprendi a ir buscar as frutas no próprio , escalando a planta, os troncos, muros, ou me dependurando com firmeza nos galhos. Além disso, ocasionalmente, rachava lenha e, constantemente, puxava água numa antiga bomba, de longo cabo, carregando com considerável força física baldes d’água para abastecer a cozinha ou regar o jardim e as fruteiras. Isso tudo rendeu-me muito vigor, concedeu-me bastante robustez e me deixou, em muitas ocasiões, incólume a doenças ou achaques, graças a Deus!

Hoje, dedico-me a caminhadas, e as faço longas e vagarosas, saboreando o movimento, seguindo meu passo normal, de cada dia, sem tentar parecer um atleta treinando para algum campeonato. Gosto de aproveitar o lugar por onde ando, sobretudo se forem parques arborizados, bosques ou logradouros próximos a águas, com muito vento me acalentando, ou bastas sombras me protegendo do calor e da inclemência do sol.

Fujo das academias como o diabo o faz da cruz. Não me sentiria à vontade exibindo feixes de músculos trabalhados com ardor, sob verdadeiro suplício em sessões de levantamento de pesos, ensaiando gestos pensados e trabalhados para causar elasticidade dos membros, tudo regado a muito suor e sob o causticante som de músicas alucinantes. Acredito que não condiz com certa faixa etária a demonstração de corpos artificialmente sarados nem a ostentação daquele enganador ar de garotão que perdeu o expresso para a idade madura e foi-se agarrando com exasperação à eterna juventude.

Sempre me pareceu despropositado ver alguém velho, ou quase alcançando a velhice, tentando demonstrar com excessiva veemência que ainda possui boa forma o suficiente para fazer tudo o que fazia quando era bem jovem. Parece contrariar a natureza e a ordem natural das coisas. A velhice faz parte da vida e a juventude não é o maior quinhão que herdamos no passar do tempo.

Nada dessas invencionices de terceira idade em que se pretende a todo custo convencer pessoas idosas de que ainda são jovens o suficiente para fazerem o que faziam há trinta ou quarenta anos atrás, e toca a promoção de bailes e de torneios de dança nos quais os velhos são convencidos a rodopiarem pelos salões, saracoteando ao ritmo das músicas que fizeram sucesso quando das suas juventudes; programas televisivos conduzem grupos de pessoas idosas para lugares remotos fomentando folguedos, passeios, banhos, recreações as mais diversas como se fosse um grupo de crianças ou adolescentes em excursões da escola. Observo que os maduros, já imaginando quando chegarão àquela idade, não parecem muito animados com essa programação, e os mais jovens parecem estranhar tanta movimentação e rebuliço para os mais vividos. Credo em cruz como costumava repetir minha saudosa avó.

Entendo que a interação, em qualquer idade, é sempre muito boa, mas haverá de ser condizente com as faixas etárias. Maduro que ainda sou, nem de longe me imagino ensaiando passos de hully gally ou de iê-iê-iê quando estiver lá pelos setenta anos. Isso se eu lá chegar! E ainda que chegue, seria uma deslavada mentira dizer que terei agilidade para tanto como quando era criança ou jovem. E foram ritmos da minha infância e, sobretudo, da minha adolescência e juventude. Mas eram bons naquela época! Hoje, quando a linguagem é mais hi tech não posso querer me comunicar vestindo calças boca de sino, amarrado por um cinto de fivela descomunal, metido num sapato cavalo de aço, dizendo para a garotada que tá tudo uma brasa, mora (nem o criador da frase a utiliza mais). Acho que assim como não se admite que um bando de crianças se reúna para tomar chá com torradas ou bebericar um cálice de licor com os amigos, sob a insensata desculpa de que um dia aprenderão a fazer tal coisa, também não tentemos prender os idosos em fases de suas vidas que já passaram. Quem tem agora setenta anos ou mais deve aproveitar essa fase da sua vida. Cada fase da vida tem seu encanto. Completei, há alguns meses, sessenta e um anos e essa é a primeira vez na vida que sou sessentão. E está sendo ótimo, apesar dos pesares! Jovem já fui, no entanto não tinha o que tenho hoje: vivência, conhecimento, um pouco de sabedoria, outro tanto de astúcia, uma razoável posição social e profissional e così via... Isso faz-me lembrar o apóstolo Paulo em uma de suas cartas aos coríntios: quando eu era menino, falava como menino, sentia como menino, discorria como menino, mas, logo que cheguei a ser homem, acabei com as coisas de menino (I Cor. 13:11), porque talvez nos aproveite mais sermos meninos na malícia e adultos no entendimento (I Cor. 14:20).

Julgo mesmo que uma certa imobilidade física, menos agilidade no corpo e nas manifestações, impele a uma atividade mental maior, a uma maior introspecção, necessária para a substancial harmonia entre corpo e mente, agora tão propalada. Em determinada fase da vida, poderá ser o passo inicial da passagem para um outro estágio da existência, ainda que seja para a inércia própria da morte. O espírito também exige sua agilidade e seu desembaraço e uma menor agitação física parece conduzir a uma maior efervescência espiritual.

Na antiga Grécia, as duas mais famosas cidades de então – Esparta e Atenas – erigiram esse saber em filosofia de vida: uma cuidava mais do corpo e de suas atividades; a outra, cultivava a mente e suas elucubrações.  Esse entender parece perdurar até hoje, porquanto quem muito cuida do corpo, com suas vaidades e exigências, sempre descura da mente e do espírito; de igual modo, quem se volta para a vida espiritual e intelectual parece não se interessar pelas veleidades físicas nem apresenta firme aptidão para as práticas ou as atividades materiais. E parece-me que os cultuadores do físico consideram suas ocupações e sua vivacidade mais importantes que as intangíveis inquietações mentais dos trabalhadores intelectuais...

Tal sentir parece acompanhar a humanidade e fazer parte de sua essência, pois que tal conduta se estende pelos séculos afora. Veja-se que nas escrituras sagradas, o Cristo, em visita a casa de seu mais íntimo amigo, enquanto ministrava seus ensinamentos a Maria, uma das irmãs de Lázaro, nota que Marta, a outra irmã, mantém-se agitada com a faina doméstica. Em certo momento, narra o evangelista, Marta, sentindo-se por demais atarefada, reclama que a irmã deveria ir ajudá-la com suas ocupações (supostamente por considerar essas atividades mais importantes!). O Mestre, no entanto, admoesta Marta de que Maria fez melhor escolha!

Antes que me perca em cogitações mais profundas, detenho-me por aqui, apenas para acrescentar que essa febre por corpos perfeitos e essa obsessão desmesurada por saúde, aos meus olhos, pode ter efeitos nocivos e drásticos. Haja vista a recomendação bastante divulgada para que as pessoas não se mediquem por indicação de amigos, não experimentem remédios como se fossem substâncias inócuas, tenham cautela até com as boas receitas caseiras, ainda para que não forcem seus organismos em exercícios físicos exagerados nem procurem submeter-se a dietas disparatadas divulgadas de boca em boca ou pelas atuais redes sociais e assim por diante... No entanto, muitas são as recomendações, mas também muitas as exigências acerca de padrão de beleza e de corpos esguios que minam a autoestima sobretudo dos mais ingênuos, os quais buscam, com sofreguidão, as mais recentes orientações de como ser saudável e ter um corpo invejável.

E tais orientações vêm de estudos que oscilam perigosamente impelindo para tratamentos e regimes que após algum tempo são abandonados porque pesquisas mais recentes consideram tais práticas ultrapassadas. Veja-se, por exemplo, a ingestão de alimentos como o ovo: antigo vilão seja pela gema, seja pela clara, agora é largamente recomendado, além da declaração de que é rico em nutrientes, como de pouco efeito nocivo. O café tem agora seu consumo incentivado como benéfico para o coração, pois, segundo consta nos estudos, em pequenas doses, faz bem à saúde, protegendo o cérebro do difundido mal de Alzheimer. Diz-se, ainda, que é suficiente uma singela xícara por dia para minorar os efeitos deletérios do colesterol em excesso, sendo igualmente celebrado ao lado do chocolate; a manteiga, após longas batalhas com as margarinas, pode agora, sem sustos, ser substituída pela nossa saborosa maionese (que desbancou o tradicional requeijão) no café da manhã (sic – pelo amor de Deus!), porém dantes fora considerada como inimiga dos corações, das coronárias e dos estômagos humanos; e – pasme-se – até o álcool, cuja imagem sempre foi denegrida como causa de todos os males físicos e espirituais, teve sua ascensão ao patamar das coisas saudáveis. Uma taça diária de vinho é considerada um brinde à longevidade! Aliás, foi encomendado, soube recentemente, um estudo para que se diga se o consumo de cerveja pelos brasileiros pode ser considerado como saudável, uma vez que a ingestão da bebida por si só é tida como salutar (a exemplo do vinho)... o grande empecilho é que somente pode ser recomendada, tanto quanto o vinho, para acompanhar determinados pratos ou mesmo separadamente desde que em doses mínimas, o que, ressalte-se, não parece ser a mania nacional. Quem viver verá!

As famosas e difundidas taxas de colesterol, de açúcar no sangue e assemelhados já tiveram seus níveis ajustados e devidamente fixados em quantidades tão diversas, que não se sabe ao certo que tipo de exames serão considerados doravante como espelhando situações de saúde que possam ser tidas como normais. Outro estudo já avaliou que tais índices não são absolutamente indicativos de que a saúde do indivíduo vai mal se não estiverem dentre esses padrões convencionados, porque já há dúvidas acerca do que, indiscutivelmente, entope artérias e veias, e descobriu-se que gordura circulando no sangue é necessário, tanto que a obesidade já foi reavaliada para se chegar à conclusão de que um abdômen dito tanquinho não é o ideal, mas um certo grau de sobrepeso é que seria o modelo a ser adotado para um corpo sadio. Ufa!

As consagradas medições da pressão arterial ­– que mantêm em sobressalto muita gente ­– deverão expressar outros valores que não os já reverenciados 12mm/hg x 8mm/hg  (ou 120/80 como preferem os cardiologistas), pois alguns laboratórios já exibem estudos nos quais esses números diagnosticam pressão arterial elevada, considerada alta, e seus portadores considerados como hipertensos, para os quais devem ser prescritos os medicamentos que esses mesmos laboratórios – que coincidência – tomaram a iniciativa de fabricar. Bravo!

No meio de todo esse cipoal de prescrições e receituários, de padrões e índices a serem observados à risca, de comportamentos para adotar e modus vivendi a seguir, nem sei se será possível viver a vida com a plenitude com que antes se vivia. Viver com uma boa parte dos prazeres interditados, talvez não seja viver, apenas sobreviver.

A despeito de todos os avanços da ciência e da imensurável gama de exames e diagnósticos que podem ser feitos em tempo mínimo, não se veem pessoas centenárias, salvo as que foram criadas sob outra cultura alimentar e de costumes. As pesquisas tão alardeadas e os relatórios tão em voga no momento não parecem transmitir a mesma segurança que havia outrora, quando os médicos de família davam consultas com menos aparato, auscultando corações e segurando pulsos, observando os sintomas e o aspecto do paciente, evidências talvez mais eloquentes que meros resultados impressos em planilhas de laboratórios, receitando pomadas e xaropes (que a gente sempre podia despejar na pia do banheiro!), apontando as fórmulas de medicamentos que eram indicados e manipulados para cada pessoa, de acordo com seu histórico familiar, seus sintomas, suas peculiaridades, sua individualidade; uma mesma cartela com vários comprimidos não era consumida por variadas pessoas, de diferentes faixas etárias e com hábitos, inclusive alimentares, diferenciados, como hoje se faz. Os remédios, talvez por isso, não provocavam tantos efeitos colaterais e, quando se tratava de certa doença, o medicamento que a curava não produzia outra moléstia decorrente desses mesmos efeitos por ele produzidos; as substâncias químicas utilizadas na farmacopéia de então não demonstravam tanta agressividade como ora se vê e a homeopatia tinha lugar de destaque com seu modo sutil de tratar as enfermidades. Não havia tantas e tão específicas especialidades médicas tratando órgãos e sintomas isoladamente: o indivíduo era tratado como um todo, visto que um órgão não funciona sozinho nem à parte dos demais.

Inclino-me a pensar que as doenças passaram a ser diagnosticadas como os defeitos de uma máquina. Já se propalou que o corpo humano é uma máquina quase perfeita, mas omitiu-se que as peças – apesar dos transplantes – não têm reposição nem funcionam com a frieza de um mecanismo produzido pelo homem. As emoções têm o poder de fazer a máquina funcionar mal, apresentar defeitos e avarias e até de fazê-la parar de funcionar. O modo de estar na vida pode fazer com que o mecanismo não responda aos comandos como deveria e, um simples ato de fé, pode deixar vírus inofensivos, transmutar sintomas e achaques, curar males que as cirurgias, as transfusões e os bombardeamentos de substâncias químicas não conseguem. E quando se trata de seres humanos com seus temores ou doenças o que importa é a cura e o alívio desses males, não importando se isso se deu por conta de injeções, comprimidos, longos tratamentos, pela dança de algum místico, pela imposição de mãos, passes, cirurgias espirituais, exorcismos ou qualquer outra saída que a mente humana possa conceber.

Com todo apreço e toda vênia à atuação dos nossos esculápios, dos diligentes médicos que tanto se sacrificam para amenizar as mazelas humanas, não podemos esquecer que toda atividade humana é falha e, como já afirmou certo pesquisador, a medicina é uma ciência de verdades temporárias.

Declarou Einstein que a ciência sem a fé é manca e a fé sem a ciência é cega. Olhar a vida na terra como um conjunto, uníssono, parece-me, na idade que alcancei, ser o meio mais equilibrado de viver e de se deixar de viver quando chegar a hora. Não consigo conceber a vida como apenas um desenrolar de acontecimentos, sem causa nem efeitos, ou o ser humano como simples fantoche de um jogo cósmico. Segundo Isaac Newton, a coincidência não existe é uma lei da física programada para dar certo na hora exata. A idade, estou convicto, nos transmite muita vivência, e isso é a grande força motriz que transforma a vida, que precisa de incertezas e do imponderável para ser plena, afinal há mais mistérios entre o céu e a terra do que possa supor nossa vã filosofia (William Shakespeare).

Talvez devêssemos olhar melhor os lírios do campo que não fiam nem tecem e nem mesmo Salomão, em toda a sua glória, se vestiu como um deles. Afinal, sentencia o ditado popular que quem corre cansa e quem anda alcança. Não sou adepto do sedentarismo, muito menos do dolce far niente. Disso não se trata. Acredito, apenas, que muito deve-se fazer, porém cum grano salis, pois a inação, de certo, é o outro lado da ação e uma boa dose de calma e pachorra pode servir para nos deixar viver melhor e em paz.

Só não chego aos extremos aos quais chegou o cineasta Arnaldo Jabor ao comentar que teve agradável surpresa ao ver Chico Anísio no programa do Jô, dizendo que o exercício físico é o primeiro passo para a morte. Depois de chamar a atenção para o fato de que raramente se conhece um atleta que tenha chegado aos 80 anos e citar personalidades longevas que nunca fizeram ginástica ou exercício – entre elas o jurista e jornalista Barbosa Lima Sobrinho – mas chegou à idade centenária, o humorista arrematou com um exemplo da fauna: - A tartaruga, com toda aquela lerdeza, vive 300 anos. Você conhece algum coelho que tenha vivido 15 anos?

E aconselha: Não fique chateado se você passar a vida inteira gordo. Você terá toda a eternidade para ser só osso!!!”.  Para arrematar, judiciosamente, ao final: “Não faça mais dieta!! Afinal, a baleia bebe só água, só come peixe, faz natação o dia inteiro, e é gorda!!! O elefante só come verduras e é gordo!!!.

Nem tanto ao mar nem tanto à terra. Fico-me pelo meio termo, ainda que precise me equilibrar como um trapezista dentre tantas opiniões acerca da boa forma e sua estreita relação com a saúde, ou como se costuma dizer hoje em dia com a qualidade de vida, seja lá o que isso possa deveras significar.

Espero ter correspondido ao seu anseio por uma contribuição minha para o seu blog, meu amigo. De qualquer das formas, precisamos nos encontrar mais, sua companhia é sempre boa, um oásis revigorante no meio do imenso deserto de mediocridade que se formou no mundo e se espalha; precisamos conversar mais e, sobretudo, precisamos beber mais, pois a bebida já foi saudada por eminente figura do regime militar...

Conta-se, nos anais da política, que o ex-ministro Roberto Campos (responsável por significativa mudança na nossa moeda – cruzeiro novo – na década de 60), quando embaixador do Brasil na França, bebericando, após o expediente, com um de seus assessores, teria pontificado: A realidade é uma alucinação provocada por uma longa escassez de álcool. Não sei ao certo se tal episódio de facto (salve o acordo ortográfico) aconteceu, no entanto, como dizem nossos irmãos italianos: se non è vero, è ben trovato. Há, ainda, o repetido comentário do também ex-diplomata Vinicius de Moraes acerca da lealdade canina que a bebida guarda com os seres humanos, pois, segundo afirmava, o cachorro é o melhor amigo do homem e o uísque é um cachorro engarrafado. Nesse passo, já estou convicto de que, se a bebida não enobrece, decerto nos levará à careira diplomática...

Abraço fraterno!

Fortaleza, maio de 2017.  

Francisco José GOMES de Oliveira

sábado, 6 de maio de 2017

SONETO XXI


Vi no espelho a solidão do artista,
Com um sorriso a disfarçar a alma;
Uns olhos rasos de perdida calma,
Em tristes versos de feição niilista.

Num horizonte a se perder de vista,
 Acumulara cada vez mais trauma;
Quem sabe um dia voltará à Palma,  
Para encontrar um velho alquimista.  

Nada obstante todo o desencanto,
 O definhar em cada despedida,
Da sua verve ainda nasce um canto.

Quando chegar a hora da partida,
 Talvez o fim não lhe importe tanto,
 Se o novo tempo lhe fizer guarida. 

Eliton Meneses

sexta-feira, 5 de maio de 2017

MENINO DE ENGENHO




Tendo finalizado há poucos instantes a leitura do livro Menino de Engenho, de José Lins do Rego, não resisti e resolvi tecer algumas linhas críticas acerca da obra, no propósito também de incentivar a leitura desse clássico romance da nossa literatura modernista.
O paraibano José Lins do Rego, assim como Rachel de Queiroz e José Américo de Almeida, está enquadrado no ciclo nordestino do romance de 30. Menino de Engenho é, portanto, seu livro de estreia, tendo como contexto histórico-social o Brasil pós-escravutura, a decadência dos engenhos e o fim do patriarcalismo brasileiro.
Narrado em primeira pessoa, a obra tem como narrador-protagonista Carlos Melo (Carlinhos), que descreve, com singeleza e riqueza de detalhes, sua infância no engenho Santa Rosa, depois de perder precosemente a mãe assassinada pelo próprio pai do narrador. Aos 04 anos, Carlinhos é levado pelo tio para o engenho de seu avô paterno e passa a descrever os detalhes de sua infância de menino de engenho, o afeto maternal da sua tia Maria, as brincadeiras de menino com os primos e também os moleques filhos de escravos já libertos, as conversas com as negras na cozinha da casa grande, os cuidados do seu avô e as aventuras no campo com sua cabrita Jasmim, além das enchentes nas varsantes que encharcaram as plantações de cana e chegavam aos casarões.
Com 09 anos Carlinho conhece Maria Clara, amiga e filha de coronel abastardo que despertara no narrador os sentimentos do amor pueril. O casamento de sua tia Maria deixa Carlinhos triste, pois ela era como uma mãe. "...esses dias de chuva, agora que a minha tia se fora, me faziam mais triste, mais íntimo comigo mesmo". Aos doze anos inicia sua vida sexual com as negras da fazenda, adquire doença-do-mundo e é conhecido como menino safado, até que seu avô manda-o ao colégio interno e ele tem que deixar o engenho para iniciar mais uma etapa na sua vida.
Há muito tempo que queria me embrenhar pela leitura desse clássico romance, já tinha estudado superficialmente e junto com outros romances do mesmo período no curso de Letras, há mais de 13 anos, só agora pude desfrutar da leitura de um clássico que nos reporta a nossa própria infância. As brincadeira e banhos de rio, as frutas colhidas no pé e saboreadas junto com os amigos, as indagações interiores advindas da mudança da fase pueril para adolescência ,as frustrações decorrentes do meio sobre as personagens, corroborando para a decadência do patriarcado rural, enfim, a infância do próprio José Lins do Rego, filho desse patriarcado rústico. O universo complexo em questão na obra é a infância de qualquer menino que vai da pureza às maledicências, características da realidade de qualquer indivíduo. Fica, portanto, minha dica de leitura.

Auricélia Fontenele
 Professora da Escola de Ensino Médio Almir Pinto

segunda-feira, 1 de maio de 2017

BELCHIOR



Belchior é muito mais do que um cantor e compositor. Belchior é um poeta, um filósofo; um poeta-filósofo da dimensão de um Goethe, de um Dante, de um Borges, com a única diferença de que nasceu entre nós, de que era como nós, 'sem dinheiro no banco, sem parentes importantes e vindo do interior'.
Quando eu tinha dez anos, meu amigo Rogério me disse:
– Você sabia que Coreaú tem um cantor famoso? Minha mãe cuidou desse cantor quando ele era criança...
Eu não fazia ideia de quem era Belchior e muito menos de que ele seria coreauense.
Aos vinte anos comecei a ouvir algumas de suas músicas; no quarto ao lado da residência universitária, também ouvia a música o sobralense Gilmar Paiva. Nesse período, Belchior fez um show em Coreaú, que, infelizmente, não cheguei a tempo de presenciar. Mas foi aos vinte e cinco anos, em meio a uma séria crise existencial, que Belchior me apareceu de uma maneira decisiva. Quando ouvi do rapaz latino-americano: "Tenho vinte e cinco anos/De sonho e de sangue/E de América do Sul/Por força deste destino/Um tango argentino/Me vai bem melhor que um blues (...)/E eu quero é que esse canto torto/Feito faca, corte a carne de vocês..." as coisas começaram a mudar de rumo.
Não faz muito tempo – uns dez anos, talvez –, passava na Beira-mar e deparei, despretensiosamente, com um show ao ar livre do Belchior. Claro que me detive e apreciei eufórico toda a apresentação, sem saber que aquela seria a primeira e a última vez que o veria em vida.
Meu amigo Gilmar Paiva sustenta que Belchior não é sobralense nem coreauense, mas, parafraseando Drummond, um gênio que começou em Sobral, ou em Coreaú (pra ele tanto faz), e foi dar nos nossos corações. E é óbvio que ele tem razão.
De uns tempos para cá, depois de embalar os nossos sonhos e as nossas esperanças, Belchior apavorou-se com algum Black Bird e, mais angustiado do que um goleiro na hora do gol, meteu o pé na estrada like a Rolling Stone. Belchior ganhou o mundo à la Tolstoi, mas, no fundo no fundo, sempre tive a esperança de que ele um dia iria reaparecer, para nos dizer que 'the dream is not over'...
O Bhagavad-Gîta diz que não se deve chorar por nada, nem por causa dos vivos, nem por causa dos mortos... Mas Belchior morreu... e o que se pode fazer, senão chorar?