Dona Lúcia morava quatro casas depois da Réu. Fazia quentinha para sustentar as filhas e o ex-marido alcoólatra. Na semana tínhamos o RU, nos finais de semana e feriados, ou fazíamos a comida ou recorríamos à Dona Lúcia, que sempre nos acolhia com um sorriso largo. Comíamos com dinheiro ou sem dinheiro. A qualquer hora do dia ou da noite tinha sempre algo para saciar a fome dos residentes. Quando Caçador chegou embriagado de uma farra e desmaiou antes de chegar em casa, foi Dona Lúcia quem foi acudi-lo. Certa feita, o ex-marido tentou agredi-la, mas bastou a chegada de quinze residentes para o sujeito por o rabo entre as pernas e pegar o beco.
As escavações do metrô já haviam começado e, apesar das rachaduras nas paredes de muitas casas, ninguém arredava pé da Carapinima. O comércio em frente não vendia fiado. O Minha Joia era simpático, mas não confundia amizade com negócio. A vizinha Rosa, enquanto esteve com o Cabeça, esbanjava simpatia, depois do fim do caso, virava o rosto sempre que nos via. Cabeça saía esporadicamente com ela até à festa do septuagésimo aniversário dela, depois se esquivou por completo até ela desistir de procurá-lo.
Silvana, outra vizinha, não escondia o preconceito contra os residentes. Em toda conversa recomendava enfática aos demais moradores que não se misturassem com essa gente. Um bando de vagabundos. Até esses que se fingiam de estudiosos.
Também próximo morava Seu Mário, cujos filhos adolescentes tinham aula de reforço na Réu duas vezes por semana. Seu Mário receava a má influência nos filhos da ala inconsequente da Réu, mas desejava a boa influência da ala estudiosa. Resolveu correr o risco. Poucos anos depois, um dos filhos se tornou médico, como o professor de reforço, e o outro, procurador federal.
Com a interdição da rua pela obra do metrô, Minha Joia teve que mudar de endereço para não falir. Ninguém mais soube do seu paradeiro. Rosa foi acometida de Alzheimer e entregue a um abrigo. Soube-se de Silvana pela última vez suplicando um emprego a um ex-residente que se meteu na política. Seu Mário ganhou um apartamento dos filhos e também se mudou. Dona Lúcia, aos quarenta e dois anos, morreu de câncer. No seu velório, havia mais de cinquenta ex-residentes, todos com lágrimas nos olhos.
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