segunda-feira, 31 de outubro de 2016

REFLEXÃO DO MÊS


Teve um tempo em que gente que hoje odeia o PT votava no PT. Teve um tempo até em que gente que hoje odeia o PT candidatava-se pelo PT... Era um tempo em que Lula estava na crista da onda. Um tempo em que o progressismo estava na moda. Nesse tempo, para ser ministro do STF, indicado pelo PT, ser progressista era uma condição indispensável. Nesse tempo, podem ter certeza, não passaria pela cabeça de certos ministros do STF – indicados pelo PT – votar, por exemplo, contra o direito de greve... Antes, era preciso ao menos simular progressismo para se chegar ao Supremo; hoje, no Brasil pós-golpe, pode-se agir com naturalidade, mesmo aqueles que deixaram um rastro de incoerência pelo caminho...

VIDA DE REPÚBLICA X



Os novatos que chegaram da Casa do Estudante pareciam ter saltado do inferno para o paraíso, sem escala no purgatório. Chegaram quando a casa já estava pacificada, sem Cabeça, Pedro Henrique e Bittencourt, e com mantimentos de sobra na geladeira. Mesmo assim, a dupla novata achou a casa o cúmulo da desorganização e ensaiou a imposição de uma nova ordem. Depois de provocarem a retirada de  Dona Marta e a filha, sugeriram a proibição da visita do T.A. e até certas restrições às visitas íntimas. O plano aparentemente era dominar a casa; no entanto, como a maioria estava coesa e incomodada com a ousadia deles, foi realizada uma reunião extraordinária e, após um debate renhido, eles passaram a compreender o significado de uma democracia. 
Finda a reunião, seguimos todos, até os novatos, na caravana do Chicão rumo à Mansão do Forró. Como ainda era cedo, mesmo sem dinheiro, paramos na Central para o esquenta. Sentar não podíamos, era cobrado couvert. O jeito foi ficar em pé, no aguardo de algum convite. Depois de alguns minutos, Caçador atendeu aos apelos de uma sorridente senhora. Ela deveria ter uns sessenta anos, mais de cem quilos e uma chapa que escorregava na boca. Ele sentou-se à mesa e, em seguida, me convidou para fazer companhia à amiga de Matilde, igualmente simpática. Em pouco tempo, todos estavam à mesa, tomando com desembaraço tudo o que era servido.
Matilde transbordava de felicidade. Enquanto dançava com o Caçador, mandou que nos servíssemos à vontade. A partir daí, o garçom não teve mais tempo de atender às outras mesas. Tudo corria bem, já havíamos até desistido de ir ao forró, quando, num deslize, Caçador jogou a noite da turma fora. Matilde tentou beijá-lo e ele, esquivando-se, pronunciou um audível: – Calma, tia!
Ela estancou prontamente, mudou de cor, olhou nos olhos dele e, com o dedo em riste, esbravejou:
– Tia? Você falou tia? Tia é o caralho, seu filho de uma puta! Dê o fora imediatamente daqui, seu veado! Você e todos esses vagabundos!
Ainda havia tempo, só não havia mais ânimo para ir ao forró. Voltamos para casa ainda cedo. Chicão e eu lamentando o ocorrido, os novatos se abrindo do Caçador.
Na segunda, uma nova greve foi deflagrada e a maioria dos residentes viajou para os seus interiores. Ficaram somente os novatos. Dois meses depois, finda a greve, encontramos um deles saboreando o que restara dos mantimentos. Uma xícara de café amargo acompanhada de chuchu.

segunda-feira, 24 de outubro de 2016

VIDA DE REPÚBLICA IX



Dona Lúcia morava quatro casas depois da Réu. Fazia quentinha para sustentar as filhas e o ex-marido alcoólatra. Na semana tínhamos o RU, nos finais de semana e feriados, ou fazíamos a comida ou recorríamos à Dona Lúcia, que sempre nos acolhia com um sorriso largo. Comíamos com dinheiro ou sem dinheiro. A qualquer hora do dia ou da noite tinha sempre algo para saciar a fome dos residentes. Quando Caçador chegou embriagado de uma farra e desmaiou antes de chegar em casa, foi Dona Lúcia quem foi acudi-lo. Certa feita, o ex-marido tentou agredi-la, mas bastou a chegada de quinze residentes para o sujeito por o rabo entre as pernas e pegar o beco. 
As escavações do metrô já haviam começado e, apesar das rachaduras nas paredes de muitas casas, ninguém arredava pé da Carapinima. O comércio em frente não vendia fiado. O Minha Joia era simpático, mas não confundia amizade com negócio. A vizinha Rosa, enquanto esteve com o Cabeça, esbanjava simpatia, depois do fim do caso, virava o rosto sempre que nos via. Cabeça saía esporadicamente com ela até à festa do septuagésimo aniversário dela, depois se esquivou por completo até ela desistir de procurá-lo.  
Silvana, outra vizinha, não escondia o preconceito contra os residentes. Em toda conversa recomendava enfática aos demais moradores que não se misturassem com essa gente. Um bando de vagabundos. Até esses que se fingiam de estudiosos.  
Também próximo morava Seu Mário, cujos filhos adolescentes tinham aula de reforço na Réu duas vezes por semana. Seu Mário receava a má influência nos filhos da ala inconsequente da Réu, mas desejava a boa influência da ala estudiosa. Resolveu correr o risco. Poucos anos depois, um dos filhos se tornou médico, como o professor de reforço, e o outro, procurador federal. 
Com a interdição da rua pela obra do metrô, Minha Joia teve que mudar de endereço para não falir. Ninguém mais soube do seu paradeiro. Rosa foi acometida de Alzheimer e entregue a um abrigo. Soube-se de Silvana pela última vez suplicando um emprego a um ex-residente que se meteu na política. Seu Mário ganhou um apartamento dos filhos e também se mudou. Dona Lúcia, aos quarenta e dois anos, morreu de câncer. No seu velório, havia mais de cinquenta ex-residentes, todos com lágrimas nos olhos.

sábado, 22 de outubro de 2016

VIDA


O Carlos se foi 
O José se foi
Maria se foi...
Todos inda ontem
Com prata no bolso
Na flor da idade
Plantados no chão.

Ficou Dona Chica
Na praça, doente
Sorrindo sem dente
Velhinha, coitada
Me dando bom dia
De pires vazio  
Pedindo um tostão.

domingo, 16 de outubro de 2016

SONETO VII



Não sabemos o passo dessa dança,
Importada de terras bem distantes;
Nossos pares se lançam confiantes,
 Mas não acham a justa semelhança.

Não importa criar a nossa herança;
 Nossos passos são pouco relevantes;
Os insultos lançados nos rompantes
  Serão marcas perdidas na lembrança.

Somos feitos de bailes redundantes;
Um deserto de almas hesitantes,
Volta e meia tratadas qual criança.

Nesta terra de sonhos abundantes,
 Apesar dessas chagas lancinantes,
 Não podemos perder a esperança.

Eliton Meneses

quinta-feira, 13 de outubro de 2016

NOBEL DE LITERATURA


Para Harold Bloom, um dos maiores críticos literários da atualidade, o mexicano Octavio Paz e o português José Saramago são os dois únicos ganhadores recentes do Prêmio Nobel de Literatura que emprestaram dignidade ao prêmio.  
Neste ano de 2016, o laureado foi Bob Dylan, cantor e compositor célebre por clássicos como Like a Rolling Stone, Just Like a Woman e Blowin' in the Wind. Não tenho dúvida de que todas as homenagens prestadas a Mr. Bob Dylan no campo musical são mais que merecidas; não tenho dúvida de que, se houvesse um Prêmio Nobel de Música, ele estaria numa fila preferencial; não tenho dúvida até de que Mr. Bob Dylan poderia ser laureado sem contestação com um Prêmio Nobel da Paz, pelo teor pacifista de toda sua admirável obra musical... Mas Prêmio Nobel de Literatura? 
É preciso lembrar que esse prêmio foi negado a gênios como Jorge Luis Borges, Ernesto Sabato, Mario Benedetti, Carlos Drummond de Andrade e João Cabral de Melo Neto. Só para ficar em escritores regionais que há pouco estavam entre nós. Os dois primeiros, argentinos; o segundo, uruguaio e os dois últimos, brasileiros.  
Não há dúvida de que a poesia de Bob Dylan contém literatura, mas uma literatura, digamos, convencional, muito distante, do ponto de vista literário, de algo fora de série como os contos de Borges ou a poesia de Drummond. 
Borges, Sabato, Benedetti, Drummond e João Cabral de Melo Neto não ganharam o Nobel de Literatura mesmo tendo escrito, cada um deles, o que há de melhor na literatura do seu tempo. A premiação de Bob Dylan confirma a tese de Harold Bloom. Octavio Paz e Saramago são apenas duas exceções, num prêmio cuja regra tem sido esquecer os melhores.
Não sei se compor na periferia do mundo traz alguma desvantagem na premiação, mas a impressão que se tem é que, ainda que fossem vivos, Cazuza e Renato Russo dificilmente seriam lembrados pela Academia Sueca... Belchior ainda não foi lembrado, talvez só porque meteu o pé na estrada... Like a Rolling Stone. Mas enquanto há vida, há esperança...

sábado, 8 de outubro de 2016

PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA


A Constituição Federal diz que ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado – até o trânsito em julgado, gize-se – de sentença penal condenatória (art. 5.º, inciso LVII). Aí vem o STF e diz que, na verdade, não é bem assim; o certo é que ninguém será considerado culpado até decisão de 2.º grau...
O incrível é que ainda tem gente, com retórica utilitarista, que comemora essa decisão, como se isso não fosse um arrematado retrocesso numa garantia fundamental, como se isso não fosse mais um golpe constitucional, como se isso não fosse mais um precedente perigoso para a própria segurança jurídica do sistema constitucional. Daqui a pouco o STF interpreta ao seu bel-prazer todo e qualquer direito assegurado constitucionalmente, e já não poderemos dizer mais nada.
A Constituição Federal tem que ser respeitada naquilo que ela nos agrada, mas também naquilo que ela não nos agrada. Quanto àquilo que ela não nos agrada, temos duas saídas, se possível uma alteração, lutar por uma emenda constitucional, ou, em matéria de cláusula pétrea, como é o caso da presunção de inocência, ora tratado, lutar por uma nova Constituição Federal, mas nunca pensar em manobras hermenêuticas para reescrever a Constituição a pretexto de interpretá-la.
– Ah, mas dos 194 países do mundo, apenas no Brasil a presunção de inocência vai até o trânsito em julgado da decisão penal condenatória...
– Não são 194 países no mundo, são 206... De toda sorte, não tive tempo de ler as constituições de cada um deles, mas ainda que admitamos que todos os demais países do mundo prevêem prisão depois do julgamento de 2.º grau, quando a Constituição Federal de 1988 foi promulgada, todos os demais países do mundo já previam prisão depois do julgamento de 2.º grau e, ainda assim, a Constituição Federal optou pela prisão depois do trânsito em julgado. Seu argumento deveria ter sido levantado na Assembleia Constituinte, mais de 28 anos atrás; agora, é intempestivo e está precluso.

terça-feira, 4 de outubro de 2016

FAIR PLAY


Numa eleição, há dois resultados possíveis: ou se ganha ou se perde. Quem ganha vira situação e quem perde vira oposição. Mais importante do que ganhar é saber ganhar e mais feio do que perder é não saber perder. Logo depois da vitória, o vencedor tem todo direito de comemorar, civilizadamente, sem necessidade de insultar o adversário. Logo depois da derrota, quem perde tem de botar a viola no saco e ir para casa, e não permanecer em campo tentando desqualificar o adversário. Mais importante do que o papel ou a posição que cada um desempenha no teatro da vida é o ser humano que atua nesse papel.

domingo, 2 de outubro de 2016

ETERNO RETORNO


Em Coreaú, ainda menino, vi uma pichação no Mercado que dizia: "Luiz Rico nunca mais!". Luiz Rico era Luiz Dico, tesoureiro plenipotenciário da gestão que acabava de ser derrotada nas urnas. Anos mais tarde, Luiz Dico foi derrotado por pouco mais de cem votos numa eleição acirrada; na eleição seguinte, foi eleito prefeito com sobra e depois reeleito com a saúde já debilitada, até que, poucos dias depois da posse no segundo mandato, veio a falecer. O certo é que, na democracia, assim como na vida, o eterno retorno é uma regra que jamais deve ser desprezada, porque "a eterna ampulheta da existência será sempre virada outra vez – e tu com ela..." (Nietzsche), até que a morte nos separe.

sábado, 1 de outubro de 2016

VÉSPERA DE ELEIÇÃO


Duas horas da madrugada, véspera de eleição, o candidato aparece no casebre no meio do nada.
– Ô, de casa!
Ninguém responde. O candidato insiste, bate palma, implora.
– Compadre, sou eu, o Vicente!
Depois de meia hora, finalmente um sinal de vida na casa.
– Apareceu, não é, compadre!? Depois de quatro anos é que apareceu! Não abro a porta para homem sem palavra.
– Que é isso, compadre?! Não me faça essa desfeita!
– Desfeita?! A desfeita quem fez foi o senhor!
– Ah, compadre, não diga isso! Não pense que esqueci a promessa da eleição passada!
– Não esqueceu? Pois o meu filho está aqui, quatro anos desempregado.
– Compadre, não é bem assim! Eu tinha um plano melhor para vocês.
– História de plano! Bastava o emprego do menino e pronto! Nosso voto o senhor não tem mais.
– Compadre, tenha calma, vou-lhe explicar o plano. Pensei assim, de que adiantaria um empreguinho de Prefeitura para o rapaz? A mixaria que ele ia ganhar não dava para pagar nem a caderneta da bodega e do bar. Depois de quatro anos, quando eu chegasse aqui, tenho certeza de que vocês não teriam guardado nem um conto de réis...
– Mesmo assim. O importante era cumprir a promessa!
– E cumpri. Cumpri de uma forma melhor do que o prometido.
– Não estou entendendo. O menino está aqui do meu lado, roncando, desempregado até hoje, e o senhor dizendo que cumpriu a promessa...
– Está desempregado, mas é como se estivesse empregado, compadre. O dinheiro do ordenado dele dos quatro anos, fui guardando, todo mês, sem precisar ele nem trabalhar, e está todo aqui, na minha mão; e eu vim hoje na sua casa não foi para pedir voto, mas só para entregar esse dinheiro todinho para o compadre e provar que eu sou é homem de palavra.
Dona Maria, que acompanhava atenta toda a conversa, tendo espiado pela brecha da janela e visto o maço de dinheiro na mão do candidato, quase deu uma agonia e repreendeu prontamente o marido ainda hesitante.
– Abre logo essa porta para o compadre, cabra sem-vergonha!