segunda-feira, 24 de fevereiro de 2014

NOSSO DIREITO CANHESTRO


As características mais marcantes do nosso Código Civil de 1916 foram o individualismo e o patrimonialismo, pilares de um modelo destinado a proteger o homem de negócios (o self made man), ou seja, o capitalista. O Código Civil de 2002 (atualmente em vigor) preservou praticamente incólumes as mesmas características.  
O atual Código Penal, editado nos idos de 1940, sob a égide do Código Civil de 1916, confere especial proteção ao patrimônio individual. Na parte especial do Código Penal, logo depois dos crimes contra a pessoa (título I), já aparecem, na sequência implícita de prioridades, os crimes contra o patrimônio (título II), vindo somente depois, por exemplo, os crimes contra a organização do trabalho (título IV), contra os costumes (título VI) – caso do estupro – e contra a administração pública (título IX).  
Nos crimes contra o patrimônio, o furto assume um particular relevo. Subtrair coisa alheia móvel, qualquer que seja a coisa ou o seu valor, pode resultar numa pena de prisão de 01 (um) a 04 (quatro) anos, além de multa (art. 155, caput, Código Penal). E se o furto for cometido com destruição ou rompimento de obstáculo, escalada ou destreza, emprego de chave falsa ou mediante concurso de duas ou mais pessoas, a pena já passa para 02 (dois) a 08 (oito) anos de prisão, além de multa (art. 155, § 4.º, Código Penal). Destarte, se um viciado em droga subtrai de um mercantil um frasco de desodorante para trocar por crack, por exemplo, ficará sujeito a uma pena de até 04 (quatro) anos de prisão... E se dois forem os viciados, numa ação conjunta, a pena, para ambos, poderá ser de até 08 (oito) anos de prisão... Dois sujeitos, portanto, seriam privados de suas liberdades, por até longos 08 (oito) anos, por conta de um frasco de desodorante...
Demais disso, sendo o furto um crime que viola somente o patrimônio da vítima, ou seja, um bem disponível, não faz sentido que a ação penal correspondente seja pública incondicionada, como é atualmente, sendo obrigado o Poder Público a punir o autor do delito mesmo sem qualquer manifestação de interesse do ofendido. Preferível e mais coerente seria exigir para a punição do furto a representação da vítima. Aliás, na lida forense, é comum as vítimas se compadecerem de autores de pequenos furtos, demonstrando desinteresse nas suas punições, mas, ainda assim, o processo seguir a marcha inexorável, por ser pública incondicionada a ação, despendendo o Estado um enorme custo por conta, muitas vezes, de um frasco de desodorante de um mercantil. 
Se o ordenamento jurídico atribui tamanho respaldo à coisa móvel, aos bens imóveis dedica uma devoção quase sacrossanta. Tanto que o mero deslocamento de um marco divisório entre dois terrenos já basta para a configuração, em tese, do crime de alteração de limites, cuja pena é de 01 (um) a 06 (seis) meses de detenção, além de multa (art. 161, caput, Código Penal). Ora, mas se há, na esfera civil, uma ação eficiente como a reintegração de posse para resolver questões de limites de terra, por que tratá-las como caso de polícia? E ainda se fala, no Direito Penal, em intervenção mínima e em sanção penal como ultima ratio... 
Outro disparate é o crime de dano. Talvez alguns nem saibam, mas a ação de danificar a coisa alheia está prevista no artigo 163 do Código Penal como crime, sujeito a uma pena de 01 (um) a 06 (seis) meses de detenção ou multa. Assim, um singelo risco num carro pode configurar, em tese, o crime de dano, resultando na prisão de uma pessoa... Não seria preferível (e mais civilizado) que quizila desse jaez fosse resolvida simplesmente na esfera da responsabilidade civil, com a reparação dos danos?
Para que tanta repressão do Estado na defesa da propriedade privada? Será a lógica do sistema?

Nenhum comentário: