quarta-feira, 11 de setembro de 2013

CARNE E UNHA?




Conto intrigante, de rara atualidade e densa carga psicológica. Dr. Silveira, médico humilde, resolve reencontrar seu velho amigo, recém-empossado governador, a contragosto da mulher:
– "Visita sem jeito. Esqueça-se disso. Política! (...)
– Que politica! Eu me importo com política? É que fomos criados juntos. Assim, olhe. (...)
Estirava o indicador e contraía o médio, para que ficassem do mesmo tamanho. Infelizmente não tinham ficado. Um deles estudara Direito, entrara em combinações, trepara, saíra governador; o outro, mais curto, era médico de arrabalde, com diminuta clientela e sem automóvel. Por isso a mulher dissera:
– Não gosto de misturas. Visita sem jeito. Cada macaco no seu galho."
A suntuosidade do palácio o impressionava, contrastando com a simplicidade do pobre médico, que a todo instante ressaltava sua inferioridade. Os muitos livros enfileirados, bem encadernados, com letras douradas, aparentavam um imponente cenário cultural, embora não passassem de uma mera coleção do Diário Oficial. Depois de muito hesitar, refletindo sobre a ideia da visita de cortesia, finalmente toma coragem e resolve entrar no gabinete, mas, na última hora, passa os pés pelas mãos, encabulado com a indiferença do amigo – metido a escrever um telegrama –, pede-lhe simplesmente um emprego, alegando necessidade, e é friamente ignorado.
– "Está bem, (...). Vamos ver. Apareça."

"Em 'Dois Dedos' aparece de maneira ridícula – e, infelizmente, fiel – o fascínio brasileiro pelo poder; e a tendência irresistível a colocar-nos na dependência dos que o detêm, legitimando-os assim na sua posição." Osman Lins

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