"A calçada ideal é aquela que oferece condições de um caminhar seguro e confortável, proporcionado pela escolha de pisos adequados, ausência de obstáculos, sem degraus entre os terrenos, com o mobiliário urbano e a vegetação dispostos de forma a não atrapalhar o pedestre."
"toda pessoa tem direito à liberdade de locomoção e residência dentro das fronteiras de cada Estado" (Declaração Universal dos Diretos Humanos)
Há muitos anos, fugindo da situação política incerta do Brasil, após o fiasco da eleição de Fernando Collor, fui-me refugiar no país irmão – Portugal – tendo lá vivido os melhores anos da minha vida. E foi mesmo lá que aprendi o verdadeiro significado da palavra “calçada”, pois para os lusitanos trata-se de uma obra de arte, artesanal, que consiste na aposição meticulosa de pedras polidas e justapostas sobre os passeios para lhes dar uma feição mais nobre e senhorial. Pois bem. No tempo em que nós brasileiros mantínhamos certa proximidade da língua-mãe, quando então denominávamos por cá de passeios os espaços por onde as pessoas trafegavam, limitados por um batente que os separava das ruas e vias pelas quais transitavam os carros e os animais, também adotamos o costume de adorná-los com pedras representando desenhos e formatos harmoniosos, tornando-os calçadas, como suas similares portuguesas. Hoje, na gíria do português falado no Brasil, chamam-se calçadões.
Na nossa cidade, no saudoso final do século XIX, o passeio mais famoso, para onde convergiam as pessoas nos fins de semana, para se colocarem à mostra, lançando as modas no vestir trazidas da Europa, chamava-se de público, hoje transmudado numa bela praça, com largas alamedas, e frondosas árvores, e reproduções de estátuas gregas clássicas, e um elegante quiosque ao centro, o qual prestava-se para receber as pessoas, no decorrer do dia, para um convescote ou para saborearem bolos, doces, geléias, sorvetes e sucos expostos em uma pequena montra; à noite, depois que partiam as famílias, acolhia os dândis, os janotas cheios de maneirismos e as cortesãs, para noitadas regadas a abundantes doses de absinto. A cidade, então alumiada por lampiões, revestia-se de singelo encanto provincial. Os coches e as carroças jamais estacionavam sobre os passeios.
Nos tempos atuais, a cidade não possui mais a graça dos tempos passados. Conforme afirmou certo pesquisador, já fomos a segunda cidade mais bonita do mundo e só perdíamos para a cidade de Tour na França (não ratifico a veracidade da informação). Mantivemos, no entanto, o ar de província, que se agrava pela arrogância, pelo egoísmo desmedido e pela absoluta falta de educação, que o fortalezense faz questão de ostentar com pedantismo e falso ar de superioridade. Nossas calçadas não mais servem para que os transeuntes caminhem por elas confortavelmente, visto que estão abarrotadas de carros estacionados, motos atravessadas, entulhos e todo tipo de sujidades, além de serem mal pavimentadas, forçando as pessoas a delas apearem e se lançarem às ruas também repletas de carros e motos que se deslocam com precipitação e velocidade perigosas.
De largas que eram, foram encolhidas e transformadas em uma nesga por vezes quase imperceptível, premida junto às paredes das edificações, consentindo a passagem de uma pessoa apenas. Em alguns trechos, os carros maiores, além de ocuparem toda a calçada, ainda encostam-se aos muros, bloqueando o pequeno espaço por onde o pedestre haveria de passar, obrigando-o a caminhar pela pista de rolamento destinada aos veículos. Ontem, como me vi premido a descer da calçada e caminhar pelo asfalto, porque não tinha espaço para eu andar dentre os carros estacionados, tive que assistir a um verdadeiro espetáculo de buzinadas que um motorista mais estúpido resolveu me proporcionar. Absurdo! O divulgado espírito acolhedor do cearense, sobretudo no que respeita ao povo da capital, é apenas quimera!
Faço, reiteradamente, tais críticas e um opositor resolveu confrontar-me, para dizer que os motoristas não podem ser privados do direito de estacionar seus carros ou suas motos. Respondi que ele estava certo, mas ressalvei que quanto ao direito de estacionar não lhe é lícito fazê-lo em qualquer lugar, em detrimento do direito das pessoas de poderem-se locomover com segurança e confiabilidade. As calçadas nunca foram destinadas a estacionamento de qualquer tipo de veículo ou condução, mas existem, desde há muito, para o tráfego de pessoas. Se permitirmos que os carros ocupem as ruas e as calçadas, por onde andarão os pedestres? Se não existem lugares destinados ao estacionamento dos veículos, que se proteste perante o Poder Público para que os construa (o problema é que se existirem tais estacionamentos públicos, eles deverão cobrar e a mor parte dos que possuem carros não querem pagar pela utilização de estacionamentos); o que é inadmissível é que se retire dos particulares a liberdade de ir e vir sem atropelos ou perigo à saúde. É dever do Estado zelar pela liberdade de locomoção de todos os cidadãos, conforme se lê na Constituição Brasileira. Afinal, sabe-se, os seres humanos são bem mais importantes que as máquinas. É de lembrar-se que todo motorista, em algum momento, terá de descer do seu carro e, assim, transformar-se em pedestre e, por isso, vai precisar atravessar ruas, vai precisar deslocar-se pelas calçadas, vai precisar transitar como qualquer outro ser humano foi preparado para fazer. Não precisamos ser um povo sem noção da realidade!
Existem, além disso, os que se postam à espera de transportes coletivos, os quais se aglomeram ao longo das calçadas e sequer se afastam para que os que desejam passar possam fazê-lo sem precisarem esgueirar-se numa dança quase macabra, para poderem caminhar sem embaraços. Caso alguém que porte muletas ou se locomova sobre uma cadeira de rodas, ou que conduza uma criança, ou esteja a amparar um idoso ou pessoa com certas necessidades especiais pretenda passar haverá de se expor ao risco de disputar espaço dentre os veículos em movimento na rua, em flagrante desrespeito às suas integridades físicas. As pessoas que caminham em grupo de três ou mais, de igual modo, juntam-se lado a lado, impedindo que quem lhes venha atrás possa desvencilhar-se e seguir seu caminho. E mais: ficam incomodadas se quem tiver pressa pedir licença ou demonstrar que quer ultrapassá-las; tentam atrapalhar a todo custo, ou não se afastando para permitir a passagem, ou mantendo-se num passo lento e demorado para retardar o apressado. Eis a hospitalidade cearense!
Há que se falar, ainda, dos patinadores, skatistas e ciclistas que em determinadas zonas da cidade ocupam boa parte dos espaços das calçadas pondo em risco a segurança de quem por elas caminha. Por vezes, parece que surgem de repente, como se viessem de algum lugar incerto e remoto, o que assusta e desestabiliza a concentração e o equilíbrio dos transeuntes. Uma querida amiga acaba de relatar um acidente que sofreu em conseqüência da imprudência de um desses skatistas, o qual perdendo o controle do brinquedo, quase a fez despencar de uma calçada alta, com uma criança nos braços, por ter pisado em falso sobre o indigitado objeto que lhe chegou pela retaguarda sem que ela esperasse ou percebesse. A mãe do adolescente autor do delito, achou a cena engraçada e divertiu-se à farta com a peraltice do filho adolescente. Que gracinha, como costumava dizer uma falecida apresentadora de televisão!
Tenho que destacar, da mesma forma, os comerciantes que instalam seu comércio nas calçadas, espalhando mesas, bancos, carrocinhas de lanches, fogareiros de churrascos etc. Certa feita, deparando-me com tal situação, pedi ao dono do pequeno bar que afastasse seus objetos para que eu pudesse passar (até porque havia uma bicicleta estacionada sobre a calçada que obstruía minha passagem) e ele me respondeu que eu se quisesse passar que andasse pela pista dos carros, porque aquele era “o comércio dele”. Estávamos na avenida Santos Dumont e eu tive que sujeitar-me a isso, malgrado o perigo de ser colhido por algum veículo em disparada. No mesmo dia, entretanto, denunciei-o ao órgão competente e, no dia seguinte, ele já havia recolhido a mobília para o interior do bar e estacionado sua bicicleta em lugar menos inconveniente para os transeuntes. De outra vez, vi um outro comerciante afirmar, quando alguém reclamou pela calçada ocupada, que ele “era um pai de família” e que “tirava dali seu sustento”. Fiquei pensando se os outros pais de família que por ali passavam também não tinham direito à sobrevivência, porquanto eram obrigados a se exporem ao risco de serem atropelados...Onde será que aprendemos que somos os titulares de todos os direitos e os demais são submetidos apenas às obrigações?
Por fim, e por mais risível que pareça, há os famosos atletas de fim de semana, que em seus exercícios físicos e caminhadas nas calçadas em volta das praças, dos estádios ou ao longo da orla marítima, parecem aviltados quando alguém, em simples deslocamento de uma parte a outra da cidade, pisa em seus “domínios”. Lançam então, prontamente, olhares reprovadores ou críticos como se somente os que estão praticando exercícios físicos pudessem transitar por aqueles locais sem terceiros para incomodar tão saudáveis práticas. Ninguém merece, como se diz no pitoresco linguajar dos mais jovens!
Para arrematar, deixo como reflexão: por que precisamos de uma lei para regular a ocupação das calçadas, de fiscalização para verificar o cumprimento dessa mesma lei, da imposição de multa por eventual descumprimento dessa norma, de atritos com os demais, se sabemos que estamos agindo errado e em detrimento dos outros cidadãos que também pagam seus impostos e têm direito de usufruir do espaço público como nós? Por que perdemos a capacidade de nos envergonhar por tais atitudes e por não termos a humildade de reconhecer que estamos errados quando avançamos sobre o espaço dos outros? Por que deixamos de reconhecer que a nossa liberdade termina onde começa a do outro? Por que recriminamos o direito dos outros de se indignarem com as nossas falhas, como se fôssemos perfeitos?
Penso, por vezes, que eu deva repetir como o grande Fernando Pessoa:
Toda a gente que eu conheço e que fala comigo
Nunca teve um ato ridículo, nunca sofreu enxovalho,
Nunca foi senão príncipe - todos eles príncipes - na vida...
Quem me dera ouvir de alguém a voz humana
Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;
Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia!
Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam.
Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?
Ó príncipes, meus irmãos,
Arre, estou farto de semideuses!
Onde é que há gente no mundo?
Francisco GOMES
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