sexta-feira, 30 de setembro de 2016

VIDA DE REPÚBLICA VIII


A chegada do Gilmar foi um alento. Sujeito tranquilo, sábio, humilde. Era sobralense e a afinidade foi instantânea. Havia estudado em bons colégios, curtido uma infância e adolescência confortáveis, até a família sofrer um golpe do destino. Em verdade, um golpe de um agiota que se passara por amigo da família. O sujeito volta e meia almoçava na casa da família, seu Greta tinha nele um confidente, era praticamente um de casa. No entanto, depois da insistência do usurário, seu Greta tomou-lhe dois milhões de cruzeiros emprestados. Pouco tempo depois, a dívida atrasou, o amigo sumiu e apareceu o oficial de justiça com a polícia para penhorar a oficina de carros da família, de onde ela tirava todo o seu sustento.
A decepção talvez não fosse maior se não houvesse a agravante de ser o agiota um padre.
Depois do episódio, a família perdeu a veia capitalista. Os filhos saíram da escola particular e Gilmar acabou na Residência 1665 para estudar economia e se aprofundar em Marx.       
Com Gilmar, a troca de ideias era permanente. Debatíamos quase tudo, filosofia, história, música, futebol e até briga de galo. Gilmar assistira a muitas rinhas em Sobral e estava convicto de que a natureza dos galos os predispunha para o combate. Eu preferia acreditar que nas rinhas havia mais adestramento do que combatividade natural dos animais.  
Quando defendi que a resistência negra à escravidão teria sido tímida, contestou com veemência a ideia, obtemperando que a resistência negra foi maior do que se poderia esperar diante do bacamarte do opressor. 
Gilmar era um intelectual de esquerda, grande leitor, amante da cultura universal, companheiro de viagens, fã do Chico e do Belchior e, acima de tudo, um poeta, um poeta no sentido mais genuíno do termo. Foi por intermédio do Gilmar que cheguei em Dostoiévski, Borges, Rimbaud... 
Gilmar era um misto de filósofo pré-socrático e boêmio moderno, avesso ao vil metal, simpático ao budismo, flamenguista, chegado ao jazz de Sarah Vaughan e ao tango do Piazzolla e, obviamente, a um café e um chope. Tomamos muitos juntos e foram nesses momentos que as ideias fluíram melhor. Aliás, continuamos a tomar até hoje; afinal, Gilmar se tornou um amigo para a vida inteira, um daqueles que se contam nos dedos de uma mão. Decerto, a melhor herança da 1665.

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