sexta-feira, 9 de maio de 2014

VIDA DE REPÚBLICA III



Cabeça havia recebido o seu cartão de crédito universitário, mas numa única tarde percorrendo os bares do Benfica esgotara todo o seu limite. Como malograra mais uma promessa financeira do perdulário veterano, para não ficarmos em casa mais uma noite de sábado, resolvemos nos achegar sorrateiramente na festa de São João das vizinhas da república feminina.
O entusiamo com que algumas delas nos receberam arrefeceu logo que descobriram que éramos colegas residentes. Cabeça já era conhecido; os novatos Gilson e eu, ainda não. Encaramos naturalmente a indiferença, até o momento em que nos convencemos de que a festa era exclusiva para os convidados com os carros estacionados.     
Como a bebida era cortesia, Cabeça preferiu ficar. Gilson e eu partimos para o forró do Sesi Parangaba, somente com o dinheiro do mototáxi e o da entrada do clube. 
– Eu sou aviador da FAB, ora! Se elas soubessem que sou um caçador...! Desabafou contrariado Gilson na saída da residência feminina.     
Gilson retornava à república depois de uma traumática reprovação por meio grau de miopia no curso de formação da aeronáutica. Mesmo fora da caserna, manteve alguns arroubos militares e a impressão de que sua patente de cadete era vitalícia.
– Relaxe, camarada! Um dia irão se arrepender de tê-lo menosprezado! Tentei conformá-lo. 
– De nos terem menosprezado! Completou Gilson. 
Fomos ao forró do Sesi, onde havia meninas simples, bonitas e solícitas. Meninas do povo, secundaristas, comerciárias, domésticas... Sabíamos que o forró do Sesi prometia, muito embora não contássemos com um único real para a cerveja.   
Quando Gilson se ofereceu a segurar a lata de cerveja da moça enquanto eu dançasse com ela uma música, pressenti algo errado. Talvez ela não tenha percebido, mas, quando tomou de volta sua cerveja, metade do conteúdo havia desaparecido...
Somente por volta da oitava música segurando e bebendo a metade da cerveja das parceiras com quem eu dançava, Gilson se deu por satisfeito e invertemos os papéis de dançarino e bebedor...
Fez bem não termos ficado na festa das vizinhas. Naquela mesma noite percebemos o abismo que há entre a gente humilde e a gente metida a besta. Tivemos uma noite fantástica com gente igual a gente. Depois do desprezo, ganhamos literalmente uma noite de diversão e Gilson, ainda de quebra, um apelido. Daí em diante seria chamado de Caçador... 

Nenhum comentário: