domingo, 25 de março de 2018

NOSSO TEMPO


– Negada da Palma é muito saudosista, vive só contando vantagem do passado, como se antes fosse tudo melhor do que o presente.
– Isso é natural do ser humano, sobretudo quando vai envelhecendo. Os velhos costumam fazer apologia do passado, mesmo quando o passado tenha sido mais amargo do que o presente. 
– Não digo em relação às experiências que cada um teve. É claro que, mesmo em condições adversas, cada um pode se recordar com saudade das pequenas coisas da vida, como o banho de rio, ou mesmo de outras essenciais, como a mãe que o tempo levou. Mas não falo desse aspecto, falo especificamente do aspecto socioeconômico. Por mais que vivamos tempos difíceis, muita coisa melhorou em relação, por exemplo, à época em que éramos meninos. 
– Com certeza. Quando éramos meninos, as crise eram permanentes e tinham contornos muito mais dramáticos do que essas atuais.
–  Hoje mostram fotos dos anos 80 e dizem: – Naquele tempo as pessoas eram magras! – Ora, as pessoas eram magras porque comiam pouco! Lembra como era?
– Lá em casa chegamos a dividir um ovo pra dois no almoço. Sovela que não vendia ia pro sol, escalada, e, mesmo banida, era aproveitada na janta. 
– Lá em casa o problema não era só a mistura. Muitas vezes não faltava só o ovo, faltava era o arroz mesmo.   
–  Lembra da merenda no Grupo?
– Ah, depois da merenda metade da classe ia embora. Meninada da rua do Cemitério ia só pra merendar. Depois da merenda, capavam o gato... Quando era ovo, ficava sempre um misto de cheiro de ovo cozido com o da flatulência de quem acabou de comê-lo...   
– As coisas eram muito difíceis. Lá em casa faltava dinheiro pro gás e o jeito era buscar lenha no mato, desmanchando as cerca alheia...
– Hoje pouca gente pede esmola. Naquele tempo, toda hora tinha gente na porta: – Uma esmolinha pelo amor de Deus?! – Perdôe!
– Agora até na Semana Santa quase não se vê gente pedindo. Naquele tempo, era uma multidão de pedinte que invadia a Palma na Semana Santa. Os comércios fechavam pra não serem saqueados.
– A gente tirava mata-fome e castanhola não era por simples diversão. Era pra comer mesmo...
– Quando era tempo de caju, a gente se dava de bem. Quem não gostava eram os donos dos cajueiros...
– No inverno tinha pau-do-rio e remela, que davam na beira do rio, sem dono...
– As famílias eram numerosas e faziam um malabarismo danado pra o pouco de comer dar pra todo mundo. Quem comia por último arriscava não ficar com nada...
– Quando eu vendia peixe, eram poucas as pessoas que compravam. Não se comia peixe... E carne muito menos... A mistura mais comum era ovo... Frango no sábado e, carne, talvez, no domingo...
– Era comum pegarem a ata verde, enrolarem num pano e esperarem amadurecer.
– O café da manhã era só café mesmo com um pedaço de pão, às vezes com manteiga. 
– A gente guardava os pacotes de café pra trocar por toalha de mesa...
– E juntava as tampas de refrigerante pra trocar por copo de plástico...
– Tinha uma professora – lembra? – que adorava ganhar de presente tamarindo. Só passava nas provas dela quando dava tamarindo...
– Pior era o outro, que a gente dava de presente um cururu inchado na gaveta do birô...
– Difícil era ganhar dinheiro naquele tempo. Muito mais que hoje. A cidade devia ter uns cinco ricos. O resto era tudo pobre. Uns pobres que podiam comer razoavelmente bem e muitos, muitos pobres que comiam muito mal. Daí a magreza generalizada...
– A gente era menino e ajudava no que podia. Trazia pra casa uma fruta, um feixe de lenha, meio litro de leite do curral... Pros adultos devia ser muito mais difícil. Os poucos que tinham algum emprego encontravam dificuldade em administrar o ordenado; os que não tinham emprego tinham dificuldade em arrumar qualquer trocado.
–  As pessoas tinham muito pouco. Carro, moto, nem pensar, quando muito uma bicicleta velha. O desafio era a sobrevivência diária.
– Lembro da emoção das negras Sabino ao receberem umas latas vazias que mamãe sempre guardava pra elas. Até hoje não sei o que elas faziam com aquelas latas...
– Como tudo era muito difícel, valorizavam-se as pequenas coisas. Uma coleção de carteira de cigarro dobrada em forma de dinheiro, um saco de tampas, um saco de bilas... Hoje a meninada nem sabe o que é isso. Vive tudo no videogame e no celular...
– Os tempos mudaram. As pessoas hoje lutam pra perder peso. Naquele tempo, lutavam pra ganhá-lo...
– Isso não quer dizer que antes se era mais ou menos feliz do que hoje. Apenas quer dizer que as coisas eram muito mais difíceis...

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