sábado, 31 de março de 2018

FRASE DO MÊS


"(...) nadie siente tanto desdén por los pobres diablos como los pobres diablos con uniforme." (Ernesto Sabato. in Sobre héroes y tumbas)

DRUMMOND


Esse é tempo de partido,
tempo de homens partidos.

Em vão percorremos volumes,
viajamos e nos colorimos.
A hora pressentida esmigalha-se em pó na rua.
Os homens pedem carne. Fogo. Sapatos.
As leis não bastam. Os lírios não nascem
da lei. Meu nome é tumulto, e escreve-se
na pedra.

(...)

Calo-me, espero, decifro.
As coisas talvez melhorem.
São tão fortes as coisas!
Mas eu não sou as coisas e me revolto.
Tenho palavras em mim buscando canal,
são roucas e duras,
irritadas, enérgicas,
comprimidas há tanto tempo,
perderam o sentido, apenas querem explodir.

(Nosso Tempo. Carlos Drummond de Andrade)

quinta-feira, 29 de março de 2018

JUSTIÇA?


– Ah, mas como você continua gostando do Lula, um condenado da justiça?
– Meu filho, meu maior ídolo da literatura é o Dostoiévski, que foi condenado à pena de morte pela justiça russa... Aliás, Sócrates tomou cicuta condenado pela justiça grega; Jesus também foi condenado à morte pela justiça romana; Mandela à prisão perpétua pela justiça sul-africana; Olga Benário entregue ao regime nazista pela justiça brasileira para ser morta... Enfim, ao longo da história, a justiça do Estado nunca foi um bom parâmetro...

quarta-feira, 28 de março de 2018

SEPARAÇÃO


Contemplava da janela do segundo andar o bairro distante onde estava sua família. A mulher e a filhinha de um ano estavam sem ele. Sua vida entrou numa espiral decadente. Há poucos meses tudo corria bem. Sua filha acabava de nascer, o comércio ia bem, a mulher estava feliz... até que Natacha apareceu e desnorteou sua vida. Os encontros ocasionais tornaram-se cada vez mais frequentes, até acabarem sendo descobertos por Amanda.
Passara os quatro dias de Carnaval com Natacha, quando voltou para casa, Amanda não estava. Decidira ir com a filha para a casa da mãe. Roberto preferiu não ficar na casa alugada. Foi morar com um amigo chinês. Amanda continuou tocando sozinha a pequena loja do casal no Centro. Como não conseguia arrumar emprego, dois meses depois da separação, Roberto não tinha dinheiro nem para pagar a passagem de ônibus de onde morava para o Centro. O amigo chinês começava a se impacientar. Roberto não contribuía em nada com as despesas. Yang passava a noite fora e quando chegava dificilmente encontrava o que deixara na geladeira. Certo dia, perdeu o controle: 
– Vá tomar cu! Vá tomar cu! 
Roberto já sabia o motivo da explosão, mas, ainda assim, interrogou o amigo: 
– O que foi Yang?
– O meu Toddynho?! Tomou o meu Toddynho! Vá tomar cu! Num compa nada!
Roberto não tinha um tostão no bolso. Vira-se obrigado a devorar o que o chinês deixava na geladeira. Em instantes, Yang dormia, mesmo com fome, e a paz voltava a reinar. Então aparecia Natacha, toda manhã, para continuar o romance que pusera Roberto entre o abismo do prazer e o do desespero. 
Aquilo não podia continuar. Estava destruindo sua vida estupidamente. No aniversário de sua filha, não esteve presente. Passara o dia deitado com Natacha. Sua família não merecia aquilo. Precisava dar um basta. Não amava Natacha, mas uma força irresistível parecia amarrá-lo a ela. Uma força que depois da separação foi esmaecendo. Não imaginava que Amanda o deixaria. Descobriu o quanto gostava da mulher e da filha depois da separação. 
A frieza de Natacha o incomodava. Ela parecia feliz com a separação, mesmo sabendo de toda a aflição e angústia que o caso envolvia. Não se importava com o sofrimento alheio. Tinha a separação como conquista pessoal. Finalmente Roberto seria exclusividade seu... No entanto, seus planos começaram a ruir definitivamente quando, no terceiro mês da separação, o pai de Roberto teve um ataque cardíaco fulminante e veio a óbito.  
Seu Adolfo adorava a nora. A última vez que Roberto o vira foi numa fila para entrar no estádio, um mês antes da separação. Quando Seu Adolfo o avistou com Natacha, deu as costas e foi embora balançando a cabeça.
No enterro de Seu Adolfo, Roberto implorou para voltar para casa. Para sua surpresa, Amanda aceitou, obviamente, com algumas condições. Foi difícil ligar para Natacha e dizer que era o fim. Mas faria qualquer coisa para voltar para casa. Reencontrou a mulher e a filha de braços abertos. O sol parecia ter voltado a brilhar depois de uma noite escura. Os dias que se seguiram ao da reconciliação foram os mais felizes da sua vida, até que Natacha ligou e disse que estava grávida.   

domingo, 25 de março de 2018

NOSSO TEMPO


– Negada da Palma é muito saudosista, vive só contando vantagem do passado, como se antes fosse tudo melhor do que o presente.
– Isso é natural do ser humano, sobretudo quando vai envelhecendo. Os velhos costumam fazer apologia do passado, mesmo quando o passado tenha sido mais amargo do que o presente. 
– Não digo em relação às experiências que cada um teve. É claro que, mesmo em condições adversas, cada um pode se recordar com saudade das pequenas coisas da vida, como o banho de rio, ou mesmo de outras essenciais, como a mãe que o tempo levou. Mas não falo desse aspecto, falo especificamente do aspecto socioeconômico. Por mais que vivamos tempos difíceis, muita coisa melhorou em relação, por exemplo, à época em que éramos meninos. 
– Com certeza. Quando éramos meninos, as crise eram permanentes e tinham contornos muito mais dramáticos do que essas atuais.
–  Hoje mostram fotos dos anos 80 e dizem: – Naquele tempo as pessoas eram magras! – Ora, as pessoas eram magras porque comiam pouco! Lembra como era?
– Lá em casa chegamos a dividir um ovo pra dois no almoço. Sovela que não vendia ia pro sol, escalada, e, mesmo banida, era aproveitada na janta. 
– Lá em casa o problema não era só a mistura. Muitas vezes não faltava só o ovo, faltava era o arroz mesmo.   
–  Lembra da merenda no Grupo?
– Ah, depois da merenda metade da classe ia embora. Meninada da rua do Cemitério ia só pra merendar. Depois da merenda, capavam o gato... Quando era ovo, ficava sempre um misto de cheiro de ovo cozido com o da flatulência de quem acabou de comê-lo...   
– As coisas eram muito difíceis. Lá em casa faltava dinheiro pro gás e o jeito era buscar lenha no mato, desmanchando as cerca alheia...
– Hoje pouca gente pede esmola. Naquele tempo, toda hora tinha gente na porta: – Uma esmolinha pelo amor de Deus?! – Perdôe!
– Agora até na Semana Santa quase não se vê gente pedindo. Naquele tempo, era uma multidão de pedinte que invadia a Palma na Semana Santa. Os comércios fechavam pra não serem saqueados.
– A gente tirava mata-fome e castanhola não era por simples diversão. Era pra comer mesmo...
– Quando era tempo de caju, a gente se dava de bem. Quem não gostava eram os donos dos cajueiros...
– No inverno tinha pau-do-rio e remela, que davam na beira do rio, sem dono...
– As famílias eram numerosas e faziam um malabarismo danado pra o pouco de comer dar pra todo mundo. Quem comia por último arriscava não ficar com nada...
– Quando eu vendia peixe, eram poucas as pessoas que compravam. Não se comia peixe... E carne muito menos... A mistura mais comum era ovo... Frango no sábado e, carne, talvez, no domingo...
– Era comum pegarem a ata verde, enrolarem num pano e esperarem amadurecer.
– O café da manhã era só café mesmo com um pedaço de pão, às vezes com manteiga. 
– A gente guardava os pacotes de café pra trocar por toalha de mesa...
– E juntava as tampas de refrigerante pra trocar por copo de plástico...
– Tinha uma professora – lembra? – que adorava ganhar de presente tamarindo. Só passava nas provas dela quando dava tamarindo...
– Pior era o outro, que a gente dava de presente um cururu inchado na gaveta do birô...
– Difícil era ganhar dinheiro naquele tempo. Muito mais que hoje. A cidade devia ter uns cinco ricos. O resto era tudo pobre. Uns pobres que podiam comer razoavelmente bem e muitos, muitos pobres que comiam muito mal. Daí a magreza generalizada...
– A gente era menino e ajudava no que podia. Trazia pra casa uma fruta, um feixe de lenha, meio litro de leite do curral... Pros adultos devia ser muito mais difícil. Os poucos que tinham algum emprego encontravam dificuldade em administrar o ordenado; os que não tinham emprego tinham dificuldade em arrumar qualquer trocado.
–  As pessoas tinham muito pouco. Carro, moto, nem pensar, quando muito uma bicicleta velha. O desafio era a sobrevivência diária.
– Lembro da emoção das negras Sabino ao receberem umas latas vazias que mamãe sempre guardava pra elas. Até hoje não sei o que elas faziam com aquelas latas...
– Como tudo era muito difícel, valorizavam-se as pequenas coisas. Uma coleção de carteira de cigarro dobrada em forma de dinheiro, um saco de tampas, um saco de bilas... Hoje a meninada nem sabe o que é isso. Vive tudo no videogame e no celular...
– Os tempos mudaram. As pessoas hoje lutam pra perder peso. Naquele tempo, lutavam pra ganhá-lo...
– Isso não quer dizer que antes se era mais ou menos feliz do que hoje. Apenas quer dizer que as coisas eram muito mais difíceis...

sexta-feira, 23 de março de 2018

TEMPO

                                                                   A Persistência da Memória :  Salvador Dalí















"Somos o tempo. Somos a famosa
parábola de Heráclito, o obscuro.
Somos a água, não o diamante duro, (...)" (Borges)

A MORTE


A morte para Borges:
"Todos os caminhos levam à morte. Perca-se."

A morte para Neruda:
"Se nada nos salva da morte que pelo menos o amor nos salve da vida."

A morte para Nelson Rodrigues:
"A morte é pior para quem fica. Quem fica chora e o defunto? O defunto nem sabe que morreu."

terça-feira, 13 de março de 2018

LI


Quase sempre caímos na rotina;
Desistimos da luta na metade;
Definhamos na flor da mocidade,
Quando ainda distantes da ruína.

Muitas vezes paramos na esquina;
Declinamos da nossa liberdade;
Malogramos na busca da verdade;
Todos presos nos ferros da usina.

Nossa vida se faz a todo instante;
Cada cena compõe o caminhante,
Numa soma de gênio e de instinto.

A despeito de toda nossa pressa,
A estrada intrincada desta peça
Não é reta, mas sim um labirinto.

Eliton Meneses

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sábado, 10 de março de 2018

DEUS


O que dizer para o melhor amigo que chora no quarto escuro a morte da mãe estendida num caixão na sala? O que dizer para uma criança de onze anos que tinha na mãe a razão de viver e a perde do dia para a noite? O que dizer para consolar o amigo, se você tem apenas dez anos e a sua mãe está em casa, ainda jovem, aprontando o almoço? 
Entrei no quarto e não tinha o que dizer. Abracei o amigo e choramos juntos, choramos copiosamente, até que ele, ainda soluçando, olhou nos meus olhos e me perguntou: 
– Onde está Deus?   
Eu poderia ter respondido com o que nos ensinavam no catecismo, mas simplesmente silenciei e voltei a abraçá-lo. 
A vida inteira aquela pergunta me inquietou. O amigo nunca mais foi o mesmo. Quando brincávamos da gata, notava que ele sempre evitava passar pelo cemitério. Um pesadelo recorrente que tive durante anos foi o de minha mãe enterrada naquela mesma cova. Acordava assombrado e ficava aliviado quando a via dormindo do lado.
– Onde está Deus?
O amigo definhou. De melhor aluno da turma passou a aluno problema. Anos depois caiu no alcoolismo e quase foi arrastado bêbado pela cheia do rio. Em seguida, foi embora e não manda mais notícia para ninguém. Não sei se uma resposta àquela pergunta teria mudado o rumo da sua vida. Ter dito que Deus não era o assassino da sua mãe talvez aplacasse um pouco a sua revolta e a sua desilusão diante do mundo.  
De todo modo, é estranho como Deus parece tão acolhedor e prestativo para uns, ao passo que para outros parece simplesmente virar as costas. Para um adulto pode-se falar em livre arbítrio, pecado e castigo... Mas para uma criança? O que poderia justificar a morte de uma criança? O que poderia justificar a morte da mãe de uma criança?
A lógica de Deus decerto não é igual à nossa. É possível que estejamos tão apegados à matéria que não entendemos nada do transcendente. Ainda assim, não deixa de causar estranheza a indiferença do mundo diante dos inocentes.
Meu amigo se perdeu na vida por não achar uma resposta. Um amigo comum dizia que, se Deus era o autor da peça, Ele poderia por ou retirar do palco quem ele bem quisesse; outro tentava justificar a morte da mãe por culpas de vidas passadas, punidas na vida presente...; outro ainda dizia que deixássemos de ser bestas, porque Deus não existia e, mesmo que existisse, não perderia o tempo conosco...
Ter dito que Deus a teria chamado para junto de si não teria servido sequer de  consolo. Em verdade, meu amigo não deixou de acreditar na existência de Deus, simplesmente não o perdoou pela morte da sua mãe.

quinta-feira, 8 de março de 2018

LIRA DOS VERDE ANOS



É inegável o avanço exponencial da cultura coreauense nos últimos tempos, especialmente na arte literária. Ao que sabemos, a produção literária tem crescido substancialmente no milênio em curso. Atemos-nos hoje na mais recente cria do Vir Magnus e imortal número dois da Academia Palmense de Letras APL Coreaú, Eliton Meneses, que fora pioneiro no ideal de fundação da referida academia há uns cinco ou seis anos e que neste pouco tempo de existência informal já pariu valiosíssimas obras grafadas em prosa e verso.

Lira dos verdes anos, uma primorosa obra poética composta em quase sua totalidade por sonetos de qualidade singular.

Sensibilidade para com o mundo e as pessoas ao seu redor, o nobre poeta manuseia as palavras formando as mais belas poesias com a singularidade de quem vive o poema por dentro. Se coloca como sujeito ativo das letras e do enredo poético. Leva o leitor às emoções mais fortes. Mais forte ainda é quando lemos algo ali que sabemos ter sido escrito especialmente para a gente. E eu vivi este clímax emotivo quando lá pela página 39 da magna obra me deparo com a singular poesia composta por versos livres de métrica e de rima intitulada "O que houve, amigo?"

Me identifiquei de imediato! E as emoções foram em forma de cogumelo atômico às alturas. Aquelas palavras retratam momentos de grande aflição em pretérito recente.

No mais, é uma obra para ser lida com um lenço na lapela. Não há outra indicação. Ao amigo leitor, por mais insensível que seja em algum momento, irá precisar. Nem que seja para massagear o canto do olho com a ponta do mesmo.

Tenho dito... E sempre!
 
Manuel de Jesus
Presidente da APL