domingo, 25 de fevereiro de 2018

BARQUINHO DE PAPEL


Era um fevereiro chuvoso. Chovia a tarde inteira. O barquinho de papel foi lançado na corrente do meio-fio naquela tarde escura. Depois de hesitar próximo ao refluxo da biqueira, o barco seguiu confiante rua abaixo, tentando desviar os pingos da chuva. Atravessou o cruzamento onde se formava um poço, observou do lado tia Oneida debulhando um rosário; Dona Antônia pela janela repetindo o sinal da cruz para que a chuva parasse; Teresa dando conselho para Auricélio parar de beber. O barco encostou no meio-fio seguinte, do lado oposto ao oitão de Consuelo, que tomava um café com solda contemplando a cerca brejada do quintal. Logo em seguida, passou por Dona Benícia, que cantava Bandeira Branca enquanto preparava a caipirinha no balde para a festa da noite. Em frente à casa de Dona Helena, a corrente atravessava a rua e encostava no meio-fio oposto. Dona Helena tomava um comprimido para a pressão e nem se deu conta da passagem do barquinho. A casa estreita de Seu Romualdo estava aberta, ele havia chegado há poucos dias de Fortaleza para passar o inverno na Palma. Na esquina de Dona Neida, o barco entrou pela rua do Peão, cruzou a via e encostou no meio-fio de Dona Terta, que tecia compenetrada um landuá no alpendre. Depois avistou Seu Vicente Portela dando o último retoque em mais uma lamparina, Zé  Abílio comentando sobre a cheia do rio, Seu Chico da Águia colando o solado de um sapato, até alcançar o monturo e fazer a curva rumo ao rio. Alguns metros adiante, o barco encontrou o rio cheio, que, para um pequeno barco, parecia um enorme mar. Entrou num remanso e sumiu  ao longe na imensidão do rio Coreaú. 
Esse barquinho de papel seguiu as águas de uma chuva faz trinta anos. Trinta anos depois, a rua, o meio-fio, o rio e o menino que fez o barco permanecem os mesmos, mas todas as outras personagens da crônica foram arrastadas pela correnteza do tempo. Trinta anos às vezes parece pouco, mas foi nesse breve intervalo que tanta gente querida deixou de habitar a nossa rua. Tia Oneida, Dona Antônia, Teresa, Auricélio, Consuelo, Dona Benícia, Dona Helena, Seu Romualdo, Dona Neida, Dona Terta, Vicente Portela, Zé Abílio, Chico da Águia... Todos se foram e a rua nunca mais será a mesma sem eles. Mas trinta anos depois, há um novo fevereiro chuvoso e há um novo barquinho de papel, feito pelo mesmo menino, que segue as águas da chuva rumo ao mesmo rio d'outrora cujas águas se renovam na intermitência do tempo.

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