quinta-feira, 28 de dezembro de 2017

DOIS DEDOS DE PROSA


– Acho um insulto a preocupação com o mercado e com a meritocracia, sobretudo num momento em que a indigência prolifera nas ruas e nas praças.
– Você é contra a meritocracia?
– A meritocracia é um ponto de partida, não um ponto de chegada. No seu aspecto da concursocracia, especialmente no setor público, é inegável que representa um avanço em relação ao compadrismo que grassava anteriormente, mas, ainda assim, pelas suas características atuais, é bastante excludente e elitista. Não precisamos bani-la, mas aperfeiçoar os seus critérios, de maneira que se torne includente e materialmente democrática.
– Como se conseguiria isso?
– A reserva de vagas para pobres, negros e trans é um ponto de partida.
– Você não acha que se o mercado se recuperar a pobreza diminui?
– E você não acha que se a pobreza diminuir o mercado se recupera? Quem vem primeiro? Quem é responsável pela diminuição da pobreza? O mercado ou o Estado? Ainda que você acredite na mão invisível do mercado – que julgo uma quimera –, quem efetivamente é responsável pela redução das desigualdades sociais é o Estado. No pacto social que forma um Estado Democrático – ou não somos um Estado Democrático de Direito? –, quando se atribui ao Estado a prerrogativa de intervir na economia, poderia o mercado se insurgir contra essa intervenção, por outra via que não as urnas? Não seria antidemocrática a pretensão de se implantar um Estado mínimo (liberal) sob a égide de uma Constituição que é social?   
– O Estado brasileiro, por mais que sofra alguma redução de tamanho, como acontece atualmente, continua sendo muito intervencionista...
– E precisa sê-lo... Um país com desigualdades históricas gritantes como o nosso não pode ficar de braços cruzados, à espera da mão invisível do mercado... Aliás, onde essa mão invisível, sem a intervenção do Estado, promoveu justiça social?
– Há muitas experiências exitosas, Reagan, Thatcher, Helmut Khol...
– Você fala de Estados Unidos, Inglaterra e Alemanha, países em que o neoliberalismo se implantou num contexto socialmente mais favorável e ainda assim com resultado final bastante pífio. É preciso não esquecer que o liberalismo clássico culminou na quebra da bolsa de Nova Iorque e na crise de 1929. Depois disso, a política mundial orientou-se pelo keynesianismo, no embalo do qual veio o New Deal, que socorreu uma Europa em ruínas... O New Deal seria a mão invisível do mercado...?
– Veja Cuba, a Coreia do Norte, a Venezuela... Esses países decadentes não estariam precisando do mercado livre?
– Antes de abolirem, nas suas palavras, o mercado livre, esses países eram melhores do que são hoje? Cuba tem um dos melhores índices de saúde e de educação do mundo. Antes da Revolução era extremamente pobre e desigual. A Coreia do Norte vive sob uma tirania. A tirania é sempre ruim, seja de direita, seja de esquerda, ruim para a economia, mas sobretudo ruim para as pessoas. O ocaso em que vive a Coreia do Norte não é uma questão meramente econômica ou ideológica, é uma questão humanitária. Quanto à Venezuela, o que efetivamente ainda existe, para além do ensaio de um socialismo bolivariano, é um Estado social, num modelo não muito distante do que foi implantado no Chile, por exemplo, e que deu certo.
– E por que a Venezuela está um caos?
– Seria interessante analisar a fundo todo o processo de implantação do bolivarianismo e sobretudo a reação que a elite venezuelana faz a ele...
– Então a elite é a responsável pelo caos humanitário da Venezuela...?
– Decerto é um dos responsáveis...
– Você é a favor da supressão da liberdade nesses países?
–  De que liberdade você fala? A liberdade civil e política ou a liberdade econômica? Do ponto de vista civil e político, ainda não se invetou nada melhor do que a democracia. A democracia pressupõe liberdade civil e política, não liberdade econômica. O ideal seria a liberdade em todos os aspectos, mas, na prática, a mão invisível do mercado jamais enfrentou a injustiça social sem a intervenção do Estado. O socialista tem um sério problema com a questão da liberdade civil e política, mas ainda pode nos perguntar: – Qual o outro caminho?
–  Não haveria outro caminho?
– Cada caso é um caso. Os países nórdicos seguiram um modelo social que funcionou. Será que Cuba conseguiria os mesmos avanços adotando igual modelo? O Chile teve muitos avanços com um modelo semelhante, mas conseguiria esse feito sem suas reservas de cobre? A supressão da liberdade civil e política é um desastre, mas é igualmente desastrosa a injustiça social. A dialética do mundo nos leva a tomar posição dentro desse jogo de forças que precisa tender ao equilíbrio. Às vezes, quando as condições são muito desfavoráveis, é preciso tencionar mais; não sei precisamente até que ponto. Esse ponto são as circunstâncias históricas que acabam determinando.

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