Quando cheguei de surpresa no fim de tarde de domingo de Páscoa, a Residência estava revirada. Gente espalhada pelo chão, dormindo ou em coma, bebida, cigarro, resto de comida, o som ainda ligado, uma placa de bar num compartimento da casa, um cenário decadente e desolador. A nova direção da entidade estudantil da Universidade havia promovido mais um encontro. Dois novatos nossos, acolhidos ingenuamente depois de sucessivas expulsões de outras REUs, compunham a chapa única que assumiu o diretório e deram de usar a 1665 como ponto de encontro.
Cabeça, que até então causara poucos problemas, aliou-se aos novatos e, de uma vida apenas boêmia, passou à farra sem controle, fechando o trio infernal. Dizia que não usava droga há oito anos, quando ainda estava na Casa do Estudante, mas, logo que chegaram os novatos, resolveu tirar todo o atraso.
Numa das primeiras noites de festa, às três da manhã, sem conseguir dormir pela algazarra e pelo barulho alto do som, tomei coragem e fui reclamar. Doze rapazes e três moças numa roda grande compartilhavam um comprido cigarro de maconha. Cabeça, ao me avistar, abriu um riso enigmático, anunciou-me ao grupo com entusiasmo e, entre elogios, me ofereceu o cigarro.
Tomei o cigarro, senti seu cheio forte, sob o olhar curioso da roda, fingi colocá-lo na boca e, de repente, larguei-o no chão e o amassei com o pé, com força, para o espanto e desalento dos observadores. Dei as costas, ninguém disse uma única palavra, deitei novamente e meia hora depois desapareceram os últimos vestígios da turma.
No dia seguinte tudo recomeçava como se nada tivesse acontecido. Não adiantava protestar, pedir moderação, ameaçar levar o caso para a Pró-reitoria, todo dia tinha encontro e após os debates sobre os problemas do mundo a farra começava.
Durante alguns meses tivemos que suportá-los. Não tínhamos maioria. Era Caçador, Sanção e eu contra Cabeça, Pedro Henrique e Bittencourt. Com Sanção ensinando história em Cascavel e raramente dando o ar da graça, o resultado das reuniões acabava quase sempre em três a dois a favor deles. Como nenhuma outra residência quis aceitar a transferência dos nossos meninos, a Pró-reitoria nos deixou à própria sorte.
No final do ano, o quadro começou a mudar. Cabeça encerrou o período de tolerância e foi excluído formalmente do programa pela Pró-reitoria. Passamos a ser maioria e, apesar dos dissabores, resolvemos aprovar a permanência informal do Cabeça, sob a condição de ele largar as farras na casa. Durante pouco mais de uma semana o acordo foi regularmente cumprido; depois, tudo voltou ao anormal.
No começo do ano recebemos Irmão Chico, protestante que aparentava austeridade na fé cristã, mas já acumulava três expulsões de residências diferentes. Nada obstante, com a chegada dele alimentamos a esperança de virar definitivamente o jogo contra a turma da farra.
T.A. era um hóspede que aparecia volta e meia de um interior distante fazendo amizade com gerações sucessivas da casa para filar um ou dois dias acomodado na capital enquanto pegava um dinheiro com o chefe do partido e fazia uma visita sorrateira a uma mulher casada no Zé Walter. Certa manhã, enquanto T.A. tomava café sem tirar os olhos de uma loira bonita de saia que dormia no chão da sala com as pernas entreabertas, Irmão perguntou-lhe o significado da sigla T.A.
– É tabaco arreganhado, Irmão! É tabaco arreganhado!
Ninguém acreditava no puritanismo do Irmão depois de sua vida eivada de perversão. De qualquer sorte, não se lhe pode negar a importância no processo de reorganização da casa. O primeiro passo foi estabelecer a proibição de bebida alcoólica e cigarro (de qualquer gênero) no interior da casa. Como a medida foi reiteradamente descumprida, aprovamos, em meio a acalorados debates que por pouco não culminaram nas vias de fato, a expulsão da famigerada dupla Pedro Henrique e Bittencourt. Como ambos protestaram contra o tratamento desigual dado a Cabeça, fixamos para os três o prazo de trinta dias para se retirarem da casa. Durante esse prazo, ainda testemunhamos resignadamente ao menos umas vinte festas dionisíacas, afixando no flanelógrafo a cada cinco dias o tempo remanescente do trio.
No dia designado para a saída, permanecemos todo o tempo na sala de estudo, reunidos, à esperada da iniciativa deles, que não eram vistos desde o dia anterior. Quando já escurecia e as esperanças esmaeciam, apareceram os três, serenos e indiferentes, numa camionete de mudança que, em alguns minutos, partiu sem nenhuma despedida.