segunda-feira, 13 de julho de 2015

FAUSTO


Beati pauperes spiritu.

Preso há mais de seis meses por tentativa de furto de duas cadeiras de balanço, Fausto era admirado pelos companheiros de cela não pela sua ficha criminal, ousadia ou astúcia, como era de costume, mas pelos seus arroubos de erudição. Loiro, alto, ainda musculoso, embora com a feição carcomida pelos vinte anos de droga, Fausto, mesmo entre os detentos, não fazia esforço para se fazer entender. 
 Não hei de quedar nesta masmorra ignóbil por mais tempo. 
Os presos não compreendiam quase nada do que ele falava e, por isso, o consideravam bastante culto; alguns diziam que ele falava em latim. 
Fausto não conteve a euforia quando o defensor público vaticinou que, muito provavelmente, ele seria solto ao final da audiência de instrução e julgamento, agendada para a semana seguinte.  
Alea iacta est! Finalmente poderei provar minha inocência perante o egrégio sodalício e sair deste covil degradante. 
No início da audiência, a expressão de Fausto era de alguma ansiedade, que, de toda sorte, não ofuscava sua natural autoconfiança. Perguntado sobre ser verdadeira a acusação que lhe era feita, Fausto respondeu que não passava de conjectura falaciosa.    
– Em verdade, Excelência, naquele famigerado dia, naquela malfadada hora, seguia eu pela Dragão do Mar, quando, nas imediações da Igreja Matriz, deparei com as duas cadeiras largadas ao sol e pensei comigo: Bem que elas poderiam ser úteis à Casa de Recuperação. Então, levei-as, uma em cada mão, mas poucos metros depois fui abordado pela viatura da polícia. Não agi, portanto, com animus rem sibi habendi.
O réu não conteve o ar triunfal. A promotora de justiça, contendo o riso, perguntou se as cadeiras estavam na calçada ou na rua.
Na calçada. Aliás, na calçada de uma residência cujas portas e janelas estavam fechadas, emendou a tempo Fausto.
O defensor público perguntou o que motivara Fausto a praticar o ato.
– O sentimento de retribuição. Passei um ano e nove meses no Centro de Recuperação, num tratamento contra as drogas, sem pagar um único centavo. Carregarei essa dívida por toda a minha vida; de alguma forma, sinto-me permanentemente na obrigação moral de pagá-la.
Ao final da audiência, a sentença foi proferida. Fausto foi condenado por tentativa de furto. A pena aplicada, de quatro meses de reclusão, já havia sido cumprida, com sobra. Com o alvará de soltura em mãos, livre das algemas, o loquaz condenado agradeceu emocionado a restituição da sua liberdade e foi-se embora radiante de felicidade pelo corredor do fórum.
– Digito caelum attingit.
Uma semana depois, soube-se do ocorrido. Fausto fora visitar um irmão numa favela em Fortaleza e o traficante da área, confundindo-o com um rival, acertou-lhe dois tiros na cabeça. 

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