sexta-feira, 7 de novembro de 2014

VIDA DE REPÚBLICA IV


 Todos os dias quando acordo, não tenho mais o tempo que passou...
Dimitri não aguentava mais ouvir todo início de manhã a voz desafinada do colega de quarto cantando sempre a mesma música do Renato Russo.
 Cala a boca, porra!
 Vai-se lascar, Dimitri!
Juan García, o simpático peruano da vizinha 1651, avisava no pátio que alguém chamava Dimitri no telefone público.
 Teléfono!
Era ela. Não teve dúvida. A moça de voz suave que conhecera no Disque Amizade ligava para confirmar o encontro. Às cinco da tarde, na Praça do Ferreira, em frente ao Cine São Luiz. Estava ansioso para conhecê-la pessoalmente. A partir das características descritas no telefone, Dimitri construiu uma imagem bastante animadora da moça, sobretudo pela voz melodiosa e sensual.
Às quatro, Dimitri vestiu uma camisa branca e uma calça jeans, calçou o tênis, borrifou pelo corpo o que restara do frasco de Azzaro e se dirigiu a pé para a Praça do Ferreira. Havia prometido à moça que iria de short e camisa azul, mas preferiu adotar a precaução, apesar da confiança que o encontro lhe inspirava.
Quando chegou na praça, olhou de longe o Cine São Luiz e não avistou ninguém que se assemelhasse à moça do telefone. Passou em frente do cinema, uma, duas, três vezes... A moça devia ter atrasado ou desistido do encontro. Depois de algumas idas e vindas, Dimitri notou que alguém sentado no banco em frente ao cinema lhe acompanhava os passos. Era uma senhora de uns quarenta anos, bem diferente da moça do telefone, talvez desconfiada do movimento suspeito do ansioso transeunte.
Não podia ser a mesma pessoa. A moça do telefone assegurou que tinha vinte e oito anos, um metro e sessenta de altura, sessenta quilos e que era simpática e atraente. A figura da senhora sentada no banco destoava completamente da descrição prometida. A discrepância ficou ainda mais evidente quando ela se pôs em pé... Não podia ser, nem por demasiado exagero. A suspeita de Dimitri somente remanesceu porque, cada vez que ele passava, a senhora mais lhe observava, dos pés à cabeça. Pensou em perguntar-lhe as horas, para sentir a sua voz, mas desistiu quando, bem perto, os olhares se cruzaram.
A senhora do banco da praça estava de vestido vermelho curto. A moça do telefone garantiu que iria de saia azul e camiseta branca. Não podia ser a mesma pessoa. Ainda assim, Dimitri resolveu passar mais uma vez pela senhora curiosa. Ambos se entreolharam com desinibida detença, estamparam no rosto uma expressão de convicta incredulidade e deram as costas, seguindo cada um o seu caminho.

Um comentário:

Galba Gomes disse...

Precaução contra desagradável surpresa.