Na era da pós-verdade, há um esgotamento dos conceitos e uma tendência à negação de todas as 'verdades' erigidas sob o velho mundo, de uma forma às vezes perigosa. Quando, por exemplo, se pretende desconstruir o que se chama de 'discurso politicamente correto', parece tender-se para a legitimação de um 'discurso politicamente incorreto', muitas vezes atravessando a fronteira do próprio preconceito. Se há excesso no 'discurso politicamente correto', deve-se combater o excesso, e não achar que o excesso de ontem justifica o abuso de hoje. Por mais que a ciência tenha fracassado em provar a Verdade, algumas verdades estão postas, são inquestionáveis e qualquer ideia de construção de um mundo novo que pretenda ignorá-las já começa mal, sem fundamento e está fadada ao fracasso.
Num regime democrático tende-se a considerar tudo um debate de opinião. No entanto, o debate deve acabar exatamente onde o preconceito começa, muito embora se reconheça que algumas vezes haja uma linha tênue entre uma coisa e outra. Sempre ouvi dizer que a música 'O teu cabelo não nega', do Lamartine Babo, dos anos 30, era um exemplo histórico de preconceito, assim como umas passagens da obra do Monteiro Lobato, dentre outras, enfim, obras que se tinham incorporado na cultura nacional, mas que eram um retrato de uma época em que o preconceito era naturalizado e que, embora reproduzidas, não eram um exemplo a ser seguido.
Atualmente, já há pessoas defendendo que a música não veicula preconceito, porque é um poema para uma mulata, que a interpretação autêntica (a intenção do Lamartine Babo) não era aquela, que, quando se diz: 'mas quando a cor não pega', está-se querendo pegar a cor da mulata, mas, como a cor não é transmissível, se quer o amor dela... O fato é que é difícil para essas pessoas reconhecerem que o preconceito é algo coletivo e não individual. O preconceito de que se trata não é o do poeta em face da musa inspiradora do poema, mas o preconceito em face da 'raça' dela, sendo plenamente possível que alguém não goste do gênero, mas goste de algo específico desse gênero, daí o mas, que é conjunção adversativa e significa apesar de, não obstante, ainda assim...
Noutro passo, não convém buscar uma interpretação do poeta autor da obra. Afinal, não se trata de julgar o Lamartine Babo, que, a propósito, fez os mais belos hinos do futebol brasileiro e já deve estar de osso branco... A questão é que 'O teu cabelo não nega' transcendeu em muito o seu autor e se tornou talvez a mais conhecida marchinha do Carnaval brasileiro, que é famoso no mundo todo, sendo executada todo ano exaustivamente. Não se trata também de censurar a própria marchinha, que já se incorporou na cultura e não tem por que ser proibida oitenta anos depois de ter sido feita. Agora, outra coisa é achar que ela não veicula preconceito e dessa forma tentar naturalizar o preconceito que ela realmente encerra. Embora, de fato, haja uma possibilidade interpretativa que possa sugerir o desejo de ser contagiado pela cor da mulata – aliás, palavra com forte conotação depreciativa, passível de uma discussão à parte –, a interpretação mais imediata é a que sugere a cor da mulata como algo que não se quer pegar, ou seja, quer-se o amor dela já que não há o risco de contrair a sua cor, que seria algo indesejável. Tal interpretação, mesmo não tendo sido o propósito consciente do Lamartine Babo, é algo que decorre da própria literalidade do texto – mas é adversativa – e a música, como qualquer outra arte, é produto cultural de um povo e não apenas de um autor. 'O teu cabelo não nega' não é produto apenas do Lamartine Babo, mas de um país que é eivado de preconceito, de um tempo recuado em que esse preconceito era ainda mais intenso e até naturalizado, inclusive porque a sombra da escravidão ainda era latente, escravidão que adotou um dos modelos mais perversos da história.
Quando se trata de preconceito, um vetor que deve nos orientar é a perspectiva da vítima do preconceito. O que acha o negro, especialmente a mulher negra, da machinha 'O teu cabelo não nega'? Sente-se ela bem ao ouvi-la ou se sente incomodada? Decerto, muitas se sentem incomodadas; logo, se há esse incômodo, há sim preconceito envolvido e, portanto, algo que não pode ser naturalizado.
A perspectiva do preconceito não é o da coisa em si, mas a do resultado danoso que ela pode produzir. Às vezes, constrói-se um brinquedo apenas para que uma criança se diverta, mas às vezes esse brinquedo causa danos à criança e, aí, passa a ser um exemplo de brinquedo que não deve ser seguido. Se há um potencial de dano em 'O teu cabelo não nega', não se trata de censurá-la, não se trata de condenar o Lamartine Babo, não se trata de tratar intolerância com intolerância, mas de deixar claro que se trata de uma peça do passado, incorporada ao patrimônio cultural brasileiro, que, de todo modo, veicula um potencial danoso e que, como tal, não é um exemplo a ser seguido.
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