Minha relação com o Direito foi bem conflituosa. No primeiro semestre, fui algumas vezes estudar à tarde na biblioteca da faculdade, mas logo passei a andar com mais frequência na do Centro de Humanidades, cujo acervo me agradava mais. No Direito, os livros eram velhos e intragáveis; na Humanidades, encontrei o que gostava, literatura, história, filosofia... Nos primeiros semestres do curso, o que menos estudei foi direito, em vez disso li muito Caio Prado Júnior, Sérgio Buarque de Holanda, Celso Furtado... Esse deleite teve um preço, as notas das primeiras disciplinas foram um tanto sofríveis.
Ia a pé da 1665 para a faculdade, de chinelo, calção e camiseta velha. A maioria dos colegas de turma já chegava de carro, roupas elegantes, perfume importado, celulares e carteiras volumosas. Naturalmente, as afinidades foram poucas. Só no segundo semestre, quando apareceram o Chagas e o Rangel, ambos também interioranos, a coisa melhorou um pouco.
Mantive inconscientemente o embalo da preparação para o vestibular. Normalmente dormia depois de uma da manhã, estudando na sala dos fundos da Réu. Bernaldo, em preparação para concurso, antes da meia noite pedia arrego. Na sala de estudo da casa vizinha um estudante de medicina lia até mais tarde.
A política estudantil nessa época estava em franca decadência. A fama do centro acadêmico e do diretório central dos estudantes era horrível. Quando o comando do DCE caiu nas mãos da turma que se reunia na Réu, comprovei que a decadência era completa e fiquei aliviado por não ter participado. Tinha consciência de que minha formação encerrava lacunas enormes que precisavam ser colmatadas com muitas leituras, sobretudo extrajurídicas. A prioridade era arranjar um estágio e passar num concurso antes de terminar o curso, além de melhorar a formação geral.
Dava umas aulas particulares na Aldeota de matemática e física, e saía apressado para o inglês na Casa de Cultura. Um residente vizinho havia aconselhado que eu nem fizesse a prova de admissão, pois o inglês da Cultura era muito concorrido e poucos residentes passavam. Ele tinha passado, mas... Notei a empáfia. Ele podia; eu, não. Fiz a prova e tirei o primeiro lugar geral.
Antes do meio do curso fiz uma provinha e fui chamado a estagiar no escritório modelo da faculdade. Como era residente, ganhei uma bolsa de meio salário mínimo. Segunda, quarta e sexta passava toda a manhã atendendo à população carente. Isso durou pouco tempo, o ritmo de estudo continuou e, logo em seguida, passei em dois concursos: um para técnico da Justiça Federal e outro para escrivão da Polícia Civil. Quando já ia para o curso de formação da Polícia, a Justiça Federal me nomeou e as coisa tomaram um novo rumo. Meu primeiro salário correspondia a dez salários mínimos. Tomei um susto quando vi tudo aquilo na conta. Depois disso, os colegas de celular e carteira volumosa passaram a me olhar com simpatia e alguns até me procuraram para pedir umas dicas de como passar em concurso.
Continuei sobriamente a vida de residente. Quando não dava tempo ir ao restaurante universitário, comia numa espelunca o almoço de setenta centavos. Caçador se espantava. Dizia que eu devia passar a comer em restaurante sofisticado... Continuei inclusive como diretor da Réu, até que o Irmão me denunciou na Pró-reitoria. Irmão era meu amigo, mas, como pretendia ser diretor, resolveu ir na Pró-reitoria dizer que eu já estava empregado e que tinha inclusive comprado um carro. O máximo que consegui foi o prazo de um mês para desocupar. Acho que ele leu "O Príncipe", que me havia pedido emprestado e nunca devolveu. Leu e não entendeu, porque o Gilmar ficou como diretor provisório, herdando a cobiçada bolsa de meio salário, e, meses depois, o Irmão, em vez de se tornar diretor, foi mais uma vez expulso de uma Réu.
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