quarta-feira, 18 de novembro de 2015

GENTILÂNDIA


Normalmente vivo por cá, espremido nesse canto de praça, como Deus tem permitido. Fui despejado do quarto onde morava quando as coisas pioraram e deixei atrasar o aluguel. A mulher não aguentou essa minha vida. Ganhou o mundo com os meninos. Nunca mais tive notícias deles. Não sinto mais saudade. Nessa vida a gente se acostuma com tudo. Essa minha vida é difícil de seguir. Arrumei um carrinho de reciclagem, um colchão velho, umas caixas de papelão, um cobertor, um prato e uma colher e me estabeleci nesta praça. A polícia às vezes aparece, faz uma vistoria, mas quando encontra alguma coisa digo que é para o consumo próprio e acaba me deixando em paz. A venda é muito pouca, a moçada da universidade não tem grana. Na sexta à noite, a galera entendida se reúne na praça e melhora um pouco o movimento. Afora isso, tenho que complementar o lucro escasso com a reciclagem e um tempo pastorando carros. 
A senhora idosa às vezes me traz um prato de comida, uns estudantes me dão um chocolate, um pessoal me traz uma camisa de partido...; vou assim tocando a vida, observando o movimento da praça. De manhã cedo chega a turma da caminhada, no fim de tarde a turma da academia da praça, no sábado os africanos jogam na quadra. Terça e quinta, sempre antes das seis, o pai e o menino de uns sete anos chegam para jogar. Penso em como andarão os meus. Admito que cometi muitos erros nessa vida. Quando quis me corrigir já era tarde. Não sei se tenho o que mereço. O certo é que as penas nunca correspondem às culpas.  
Vejo o olhar indiferente dos caminhantes, a cara de nojo de um jovem gordo, o desdém do dono da banca de revista. Quando Amanda aparece à noite, negocio meia hora com ela. Alguém disse que este país não pode dar certo porque, dentre outras coisas, puta se apaixona e traficante se vicia. Amanda, coitada, de tão viciada, mal se sustenta em pé. Também nunca me deu sequer um desconto pelos muitos galanteios que lhe faço. Quanto aos traficantes, ao menos os da praça, de fato, não apuram nem para sustentar o vício.  
Ando decrépito, sujo, maltrapilho e com poucos dentes. Os dois únicos amigos que me visitam são doidos varridos. Roberto, doido de nascença, e Nélson, endoidecido pela pedra. Roberto há poucos dias tentou afugentar, com um porrete, um casal lésbico que se beijava na praça, mas acabou no hospital depois de uma pedrada nas costas. Nélson fugiu de um abrigo ainda criança e resolveu morar nos arredores da praça. Diz que ficou perturbado depois de uma surra da polícia. Tem alguns intervalos de lucidez, vive da caridade alheia, dorme no jardim da casa do Roberto e não furta nada de ninguém.
O dono da banca não tem vida. Fica de domingo a domingo no batente. Abre cedo e fecha tarde. Dizem que possui várias casas alugadas. Nunca me deu um cigarro. Não queria a vida do dono da barraca. A turma que dorme na praça consegue ser mais feliz. Não precisamos de muita coisa para viver. O passado não se muda. No futuro talvez reúna forças para uma mudança. O dono da barraca me recrimina porque não sou igual a ele. Roberto diz sempre que há tempo de plantar e há tempo de colher. Nelson costuma dizer que não preciso mudar, porque em time que está ganhando não se mexe. 

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