domingo, 13 de julho de 2008

Traços Característicos do Sertão de Graciliano
O sertão, segundo o Dicionário Aurélio, é uma “zona pouco povoada do interior do país, em especial do interior da parte norte-ocidental, mais seca do que a caatinga”. Tal definição exprime apenas o aspecto geo-demográfico, escondendo a amplitude semântica do termo. Em verdade, o sertão significa bem mais que uma grande extensão de terra semi-desabitada. É o que concluimos após a leitura da obra de Graciliano Ramos.

O escritor nos mostra um sertão que penetra a alma do homem que nele habita, invadindo-o de tal forma a confundir-se com o próprio homem. O sertão de Graciliano mora no íntimo do sertanejo, é parte integrante dele. Não lhe interessam descrições de eventos físicos, senão na medida em que interferem e se manifestam nos sentimentos e nas dores das pessoas. Graciliano Ramos não trata exclusivamente em seus livros de secas como fatores físicos, pois o que lhe interessa é sobretudo o reflexo do sertão introspectivo nas pessoas. Dessa forma, o escritor traz também para dentro dos seus personagens o vazio inato ao sertão e suas conseqüências no caráter das pessoas. A socialização precária, o embrutecimento, a ausência de auto-estima. Essas características estão presentes em algumas de suas obras, dentre as quais pode-se mencionar Vidas Secas, em que o perfil “bruto” de Fabiano é traçado de forma a revelar o vazio do homem:

"(...) Vivia longe dos animais. Os seus pés duros quebravam espinhos e não sentiam a quentura da terra. Montado, confundia-se com o cavalo, grudava-se a ele. E falava uma linguagem cantada, monossilábica e gutural, que o companheiro entendia. A pé, não se agüentava bem. Pendia para um lado, cambaio, torto e feio. Às vezes utilizava nas relações com as pessoas a mesma língua com que se dirigia aos brutos- exclamações, onomatopéias. Na verdade falava pouco. Admirava as palavras compridas e difíceis da gente da cidade, tentava reproduzir algumas, em vão, mas sabia que elas eram inúteis e talvez perigosas." (RAMOS: 1993. p. 19/20 )

O sertão, no sentido mais amplo, é a causa primordial das contradições dos personagens de Graciliano. O caráter vil de Paulo Honório, por exemplo, é também formado pelo meio injusto em que ele vive, pelo mundo sertanejo impiedoso representado pelo martírio da seca, tendente a corromper a índole das pessoas. É então no conflito íntimo do sertanejo, no intuito de superar as contradições do seu mundo, que reside a temática central da obra de Graciliano. O homem castigado pelos rigores da seca, pela exploração do homem pelo homem, quase reduzido à condição de irracional, mas ainda buscando resgatar a dignidade, ainda sonhado com ela, inconformando-se com a própria condição para tentar superá-la.

O sertão de Graciliano é um sertão introspectivo, refletido no homem, tentando subjugá-lo, tentando humilhá-lo. Impõe-se como um desafio humano, um longo deserto que o homem tem de atravessar para mostrar-se homem; invade de tal forma o sertanejo que muitas vezes confunde-se com ele. As mãos calejadas do sertanejo são parte do sertão, os monólogos incongruentes, o olhar vago, a solidão, o embrutecimento, tudo é o sertão que habita o sertanejo. Graciliano traz como exemplo dessas descrições nos seus livros o drama psicológico vivido por Paulo Honório na obra São Bernardo. O protagonista reflete sobre os acontecimentos marcantes em sua vida e afirma que o meio foi o responsável por suas atitudes desumanas:

"Creio que nem sempre fui egoísta e brutal. A profissão é que me deu qualidades tão ruins. (...) A culpa foi minha, ou antes, a culpa foi desta vida agreste, que me deu uma alma agreste." (RAMOS: 1995. p. 100 e 190 )

Os personagens de Vidas Secas e São Bernardo procuram compreender o mundo, superando suas contradições, para torná-lo melhor, ainda que numa perspectiva intencional. O mundo sertanejo subjuga as pessoas, as torna brutas qual Fabiano, vis qual Paulo Honório. Castiga-as de forma severa, mas não as tornam complemente irracionais; afinal, há sempre uma réstia de dignidade, ainda que efêmera, também de respeito, de convicção e de esperança. De modo que o meio físico não corrompe de todo o homem, apenas maltrata-o, invade-o, às vezes até confundindo-se com ele, mas o sertanejo resiste, não se degenera, ainda consegue pensar num mundo melhor. Preocupa-se com um mundo melhor, perdendo-se amiúde em divagações confusas, numa busca desesperada para compreender o mundo que o cerca. O personagem Fabiano, em Vidas Secas, é exemplo dessa busca constante de superar as próprias limitações. No último capítulo do livro, ele se mostra corajoso e otimista mesmo estando a enfrentar as adversidades da seca:

Pouco a pouco uma vida nova, ainda confusa, se foi esboçando. Acomodar-se-iam num sítio pequeno, o que parecia difícil a Fabiano, criado solto no mato. Cultivariam um pedaço de terra. Mudarse-iam depois para uma cidade, e os meninos freqüentariam escolas, seriam diferentes deles. Sinhá Vitória esquentava-se. Fabiano ria, tinha desejo de esfregar as mãos agarradas à boca do saco e à coronha da espingarda de pederneira. ( RAMOS: 1993. Pag. 125 e 126 )

O sertão de Graciliano Ramos, o vazio que corrompe a índole e amargura o sertanejo, manifesta-se também na linguagem do escritor. Utilizando-se de uma economia vocabular, dando maior relevância aos substantivos na caracterização de seus personagens, em vez dos adjetivos, Graciliano torna ainda mais evidente o quanto o sertão influencia seus personagens. Mas, paradoxalmente, a narrativa desenvolve-se em estilo clássico, ainda que não tenha se afastado da linguagem popular nordestina. Observemos o que nos mostram as indagações abaixo:

"(...) A essas impregnações, Graciliano reage com a contundência da linguagem, a economia de palavras e ações induzidas pelo minguado e seco meio sertanejo. (...) Destaca-se em Graciliano Ramos a capacidade de síntese, ou seja, a habilidade de dizer o essencial em poucas palavras. (...) Em sua obras o substantivo é muito privilegiado, o que não ocorre da mesma forma com o adjetivo. A análise que o autor faz da condição humana faz com que sua obra universalize-se." (
http://www.mundocultural.com.br/graciliano-ramos/estilo.asp. )

Aliás, a fala coloquial sertaneja, sobretudo em São Bernardo, é repleta de termos oriundos de um português clássico, trazidos por alguns nobres, que por razões de diversa ordem acabaram instalando-se no interior nordestino em ricas fazendas de criação de gado. Tais vocábulos sofreram algumas transformações, mas conservam ainda um substrato suficiente para identificar sua origem. Vejamos exemplos desse apuro na linguagem extraídos dos relatos de Paulo Honório no romance São Bernardo:

"Conheci que Madalena era boa em demasia, mas não conheci tudo de uma vez. (...) Agitam-se em mim sentimentos inconciliáveis: encolerizo-me e enterneço-me; bato na mesa e tenho vontade de chorar. (...) Contive-me porque tinha feito tenção de evitar dissidências com minha mulher e porque imaginei mostrar aquelas complicações ao governador quando ele aparecesse aqui. Em todo o caso era despesa supérflua." (RAMOS: 1995. p. 100,103 e 107 )

O relativismo temporal constitui outro traço relevante do sertão de Graciliano Ramos. Em suas produções, não existem referências ao momento presente dos fatos descritos. Não se sabe ao certo em que tempo ocorre a narrativa. Esse aspecto não acontece da mesma forma com as produções surgidas no mesmo período, em que os fatos são apresentados de acordo com o tempo convencional. A delimitação temporal seria um obstáculo para um romancista psicológico como Graciliano Ramos. O tempo o sufocaria. Melhor pintar o drama humano qual um quadro; analisá-lo estático, como um verdadeiro cenário sertanejo. Preocupar-se com o momento aprofundaria a análise sociológica, mas amesquinharia a psicológica, que mais importa a Graciliano. As produções do regionalismo de 30 são predominantemente sociológicas, enquanto as de Graciliano são, quase todas, psicológicas. Seus personagens e a própria narrativa são atemporais, alheios à ação do tempo. É o que também afirma o crítico Álvaro Lins, num artigo destinado ao escritor:

"(...) Toda a sua obra guarda um certo caráter de vertigem, de oscilação, de ambivalência. É o relativismo do tempo, o qual, como se sabe, representa uma contingência muito importante no desenvolvimento romanesco. Tendo uma concepção materialista da vida, o Sr. Graciliano Ramos deliberou, então, valer-se de um recurso intermediário: a abstração do tempo. (...) O tempo torna-se assim um elemento indeterminado e arbitrário. Nunca se sabe exatamente quando a narrativa corresponde, em tempo e ação, aos fatos e atos que a produzem." (LINS, Álvaro. Valores e Misérias das Vidas Secas: 1963. p.148 )

O discurso indireto livre constitui mais uma outra característica de Graciliano Ramos. Esse tipo de narrativa consiste numa forma de expressão que aproxima narrador e personagem, dando a impressão de que ambos se confundem. Assim, é muito presente nas suas produções literárias, dentre as quais, Vidas Secas a identificação do escritor com o personagem Fabiano, de tal forma que muitas vezes não se sabe ao certo a quem as características se destinam. Vejamos um trecho abaixo comprovando o acima referido:

"Olhou em torno, com receio de que, fora os meninos, alguém tivesse percebido a frase imprudente. Corrigiu-a, murmurando:
- Você é um bicho, Fabiano.
Isto para ele era motivo de orgulho. Sim senhor, um bicho, capaz de vencer dificuldades.
Chegara naquela situação medonha – e ali estava, forte, até gordo, fumando o seu cigarro de palha.
- Um bicho, Fabiano
." (RAMOS: 1993. p. 18)

Não se pode esquecer também que Graciliano é um mestre do humor. Um humorismo sarcástico, meio irônico e “estraga prazer”, mas extremamente refinado. Tal traço decorre da influência machadiana (não admitida pelo escritor), ficando bem evidente nos seus livros infanto-juvenis, (Alexandre e outros heróis e A Terra dos Meninos Pelados), e em toda sua obra, como se observa num trecho extraído de Vidas Secas:

"(...) Despertara-a (Sinhá Vitória) um grito áspero, vira de perto a realidade e o papagaio, que andava furioso, com os pés apalhetados, numa atitude ridícula. Resolvera de supetão aproveitá-lo como alimento e justificara-se declarando a si mesma que ele era mudo e inútil. Não podia deixar de ser mudo." (RAMOS:1993. p. 11)

Auricélia Fontenele - 2002

2 comentários:

Eliton Meneses disse...

Trecho da monografia do curso de Letras.

L. disse...

Excelente ensaio.