sexta-feira, 27 de julho de 2012

O MEU AVÔ NAGIBE


Quando nasci, faltavam 3 dias para o meu avô completar 68 anos. Meus pais moravam em Quixadá e ele, em Fortaleza. A primeira lembrança que tenho dele é de uma véspera de natal ou outra comemoração; minhas tias e tios todos reunidos pela manhã, antes da festa, e eu brincando com uma bola de encher. - Nagibinho, me dê esse balão, meu filho. Se estourar, é capaz do seu avô ter um troço com o susto – eram os cuidados da tia Salete.

Por essa época o vovô já era meio surdo e estava longe de onde eu brincava; até hoje me pergunto como se daria o susto.

Uma grande distância nos separava; mas nem por isso, ele deixou de me influenciar enormemente. Eu observava de longe aquele velhinho de andar arrastado, circunspeto, indiferente às superficialidades da vida, reverencial. O modo cerimonial como se sentava à mesa na hora do almoço, sempre depois de acender a luz da sala de jantar e antes de bater com o garfo no prato, anunciando a refeição. A maneira como, invariavelmente, servia-se:

– Primeiro o arroz, depois o feijão e depois o macarrão, depois, se ainda tiver, pode vir tudo que quiser. – cantava para fazer graça.

Depois do almoço, o pudim. E o café, cuja xicrinha levava para a varanda, onde estirava as pernas sobre outra cadeira, depois do invariável – Aaahhh! Tinha fama de dengoso, e de teimoso também, o meu avô. Mas teve uma vida bem ativa. Aposentou-se só aos 70 anos de idade, na expulsatória, como Sub-Procurador Geral de Justiça, o que não o impediu de continuar a trabalhar até quase 80, como assessor do Des. Ferreirinha, no Tribunal de Justiça do Estado do Ceará. Tinha orgulho de ter, em determinado ano, alcançado a marca de mil pareceres lavrados na Procuradoria de Justiça do Estado do Ceará.

Que a cerveja era a sua bebida preferida, só soube por ouvir dizer. Não alcancei essa época, só bebi com ele uma vez. Cismou um dia que voltaria a beber. Abriu o portão e foi para o bar, sob os gritos de apuros da minha avó. Trouxe ainda duas garrafas, que bebemos na varanda. Foi só, ou desistiu da idéia ou vez aquilo de pirraça com a vovó.

Depois de aposentado, vi-o muitas vezes no seu gabinete, datilografando em uma remington manual. Aquela pequena sala, a qual só se podia atingir passando pelo quarto da vovó e pelo quarto de vestir, era mágica pra mim, tinha uma ampla janela que, nas horas viçosas da manhã, espalhava uma luz leitosa e fresca sobre a escrivaninha negra do vovô, repleta de pequenos cacarecos, canetas, relógios e despertadores de todos os tipos, lanternas, canivetes e, até, uma ou outra ferramenta. A mesa onde se apoiava a máquina de escrever ficava por trás do bureau e da cadeira giratória, com apoio para os braços, de madeira de lei; mais que isso, cabia apenas a pequena estante com poucos livros e, na parede, um pôster fotográfico, onde eu, com apenas dois anos de idade, sorria em preto e branco.

Foi nessa estante que encontrei, já adolescente, estudando em Fortaleza, uma brochura intitulada O misterioso triângulo das Bermudas. Depois do almoço, o vovô com as pernas esticadas, sentado da dita varanda, palito no canto da boca, vendo-me folhear o livro, falou. - Quer levar? Leve... - Acho que já perdi o livro que, naquele dia, carreguei com rematado orgulho.

Eu morei um tempo perto da casa dele e sempre andava por lá. De certa feita ele me pediu para comprar o leite, deu-me o dinheiro e fui satisfeito como o quê. Voltei com um saco de leite B; o C havia acabado. Ao receber o pacote, não teve dúvidas. - Olhe Wanda! Esse menino é abestado...

Cresci ouvindo ovações ao vovô, mas eram a minha avó, as minhas tias, o meu pai. Não se deve dar muito crédito, embora não se desmereça. Quando ingressei na Faculdade de Direito, escutei outras referências a ele. Alguns professores o conheciam e não hesitavam em tecer-lhe comentários elogiosos. Um dia transmiti-lhe que um professor de Direito Penal mandara lembranças e um grande abraço. - Quem?... O Desembargador?... Foooi?... Ehehe. - O professor era um renomado advogado.

Às vezes via-o tão lúcido, escrevendo alguma coisa ou fazendo versos, que me perguntava onde estavam os livros do vovô, a sua grande biblioteca de Direito Penal. Papai me dizia que uns haviam sido emprestados, outros se deterioraram pelo Mondubim, no sítio onde eles moraram por um tempo. Uma vez, num desses momentos pós almoço, não sei porque, o vovô recitou pra mim, como que para testar sua memória, o art. 81 do Código Civil, enunciando o conceito de ato jurídico. Acabara de ser entabulada a nossa mais profícua discussão jurídica.

Jamais o vi lendo coisa diversa dos pocket books de faroeste, deitado de lado na ampla cama, o abajur aceso. Tinha aos montes. Era como se sua vida se tivesse resumido ao essencial: permanecer ao lado da Wanda, montar a árvore, instalar os enfeites luminosos por toda a casa e também no jardim, a cada Natal. Era altiva a maneira como, nas sucessivas vésperas de Natal que passei na casa da vovó, ele permanecia na sua felicidade centrada, indiferente ao fuxico, ao ruge-ruge de gente. Os homens sentavam numa mesinha na varanda, bebiam e conversavam e o meu avô em sua placidez distante, separado dos assuntos mundanos.

Era auto-suficiente. Ele se bastava. Fazia os próprios projetos e os executava, como no dia em que resolveu dirigir seu velho Diplomata SS, rubro-negro. Depois de tanto tempo sem guiar, simplesmente pegou das chaves, deu a partida e a aventura acabou numa frondosa árvore que se erguia na calçada oposta, bem em frente à garagem, com uma lanterna quebrada.

Tive a alegria de vê-lo e ajudá-lo a consertar seus carros. Detinha uma técnica toda especial para fazer com que o motor funcionasse, tampando com a mão a saída de ar do carburador. Por duas oportunidades fui com ele até o Mondubim. Levávamos cloro para a piscina, almoçávamos, e, numa das vezes, o vovô tirou a camisa e se pôs a concertar o motor de puxar água, botava força, praguejava; não havia jeito, não sairíamos dali antes que ele sentenciasse. – Ficou formidável, especial.

Depois de algum tempo que a Trycia freqüentava a casa dos meus avós, ele nos sacudiu a pergunta:

- Porque não casam?

- Com que dinheiro, vovô?

- Ehehehe...Não precisa de dinheiro para casar... – Talvez um dia eu entenda.

O meu avô atingiu um estágio onde os questionamentos e as preocupações cessam. A filosofia resume-se ao ato. Bastava-lhe viver e deixar que os outros, por queridos que fossem, também vivessem. Olhava a vida com um distanciamento confortável, um silêncio cúmplice, uma serenidade de quem sabe que não é preciso se justificar perante ela. Quando me despedia dele, beijava-lhe a cabeça sempre pensando no herpes zoster que lhe atingira a testa alguns anos antes e ele:

- Tá... Felicidades...

Conservava-se austero, as mãos entrelaçadas atrás da cintura e os lábios crispados, fazendo um pequeno beiço. Altivo. Como se não fosse preciso qualquer esforço para se alcançar o sentido da vida.

Nagibe de Melo Jorge Neto 
Juiz Federal e Escritor 

Um comentário:

Eliton Meneses disse...

Uma primorosa crônica memorialista do amigo Nagibe Neto, que temos a honra de compartilhar!