domingo, 30 de março de 2014

EXECUÇÃO DE ALIMENTOS


Uma das atividades mais comuns da Defensoria Pública numa comarca do interior do Estado é a execução de pensões alimentícias atrasadas. Infelizmente, a inadimplência é elevada e o credor (em regra a mãe) tem de procurar periodicamente o sistema de Justiça para fazer a cobrança, que pressupõe um título executivo, ou seja, uma decisão judicial ou uma transação extrajudicial estabelecendo a pensão.
O defensor público, inicialmente, costuma encaminhar para o devedor (em regra o pai) uma notificação para que pague em 48 horas o débito, sob pena de adoção das medidas judiciais cabíveis.   
Decorrido o prazo sem o pagamento, entra-se em Juízo com a execução de alimentos, que pode seguir dois procedimentos diversos. A execução dos valores atrasados há mais de três meses é realizada com base no art. 732 do Código de Processo Civil. Nesse caso, o devedor é citado para, em três dias, pagar o débito ou, caso não o faça, serem-lhe penhorados bens suficientes para a satisfação da obrigação. Tal modalidade de execução, na atuação da Defensoria Pública, em regra acaba sendo inócua, à falta de bens penhoráveis do devedor. Noutro passo, a execução das três prestações anteriores ao ajuizamento da ação e das que se vencerem no curso do processo é realizada com base no art. 733 do CPC (cf. Súmula 309, do STJ). Nesse caso, o devedor é citado para, no prazo de três dias, efetuar o pagamento, provar que o fez ou justificar a impossibilidade de efetuá-lo, sob pena da decretação de sua prisão civil.
A justificativa da impossibilidade do pagamento da pensão somente tem sido aceita em casos excepcionais, como numa doença grave que impeça o devedor de trabalhar e de conseguir alguma renda. A propósito, está pacificado que o desemprego ou a dificuldade financeira não justificam a impossibilidade do pagamento da pensão alimentícia.
A prisão civil não é uma pena, mas apenas uma pressão psicológica para que o devedor realize o pagamento, podendo ser decretada pelo prazo de 1 (um) a 3 (três) meses, nos termos do art. 733, § 1.º, do CPC (cf. STJ, RHC 23.040/MG, 4.ª Turma, rel. Min. Massami Uyeda, j. 11.03.2008). Uma vez solto, quer pelo pagamento, quer pelo encerramento do prazo da prisão, o devedor poderá ser preso novamente, quantas vezes forem necessárias, caso não pague as prestações vencidas a partir da soltura.
A eficácia da execução de alimentos na modalidade do art. 733 do CPC é impressionante. Há muitos devedores que só aparecem com o dinheiro da pensão alimentícia quando são presos ou estão na iminência de sê-lo. Quase sempre a ação é simples, rápida e eficaz. Pago o débito, o devedor é imediatamente liberado (art. 733, § 3.º, CPC). 

terça-feira, 25 de março de 2014

MÁRIO GOMES



Desta feita a conversa foi coerente e demorada. Mário Gomes, depois de um aceno à distância, aproximou-se sorridente e aceitou, algo surpreso, o convite para sentar-se à mesa. Pedi dois chopes ao garçom e sugeri um brinde. As pessoas das mesas vizinhas espiaram no início de esguelha, com surpresa e desconforto, aquele que deviam considerar um simples mendigo perturbado, mas com a evolução da prosa findaram cuidando de suas próprias vidas.
Apesar do aspecto físico um tanto combalido, o poeta mostrou-se com excelente disposição. Lembrou-se do Galba Gomes, do Benedito Gomes, de detalhes da última conversa que travamos... Disse que considerava bastante oportuno o convite para compartilharmos um chope... Depois, contou-me que seu pai era natural de Canindé e sua mãe de Caucaia, falou de alguns parentes, de sua idade e definiu-se simplesmente como um poeta independente.  
Ergueu-se, num arroubo eufórico. Questionou se iríamos beber ou só conversar... Sentou-se novamente, cedendo ao meu apelo, e, já calmo e afável, resolveu presentear-me. Passou-me uma folha de papel ofício, um pouco amassada, com um breve texto em sua homenagem assinado pelo poeta e historiador Juarez Leitão, com um desenho abaixo de um Mário Gomes jovem e robusto, feito pelo poeta e ilustrador Aldifax Rios.
Na sexta animada do Chopp do Bixiga, tentei convencê-lo a procurar um médico para cuidar da sua coluna, que aparentava tão envergada quanto a de Frei Damião. Mário Gomes assegurou que não precisava de médico. Considerava sua saúde impecável... Em seguida, ergueu-se mais uma vez, elogiou a beleza da Auri, disse que não gostava de segurar vela e pediu apenas um real para uma dose de cachaça... Com a moeda no bolso, fez um leve aceno sorridente e seguiu seu passo trôpego na noite fortalezense.

segunda-feira, 24 de março de 2014

FORTALEZA APAVORADA



Fortaleza segue sua escalada de violência. Agora já ocupa a 7.ª posição no ranking das cidades mais violentas do mundo! O problema é crônico, complexo e sem remédio de efeito imediato, mas como, desde a antiga Roma, é consabido que: Cessante causa tollitur effectus*, eis algumas causas perceptíveis a olho nu de tanta violência: 1) Fortaleza também ostenta o "título" – não tão propagado pela mídia – de uma das cidades mais desiguais do mundo; logo, sendo tão gritante a exclusão social, não deveria causar surpresa a posição da cidade dentre as mais violentas do mundo; 2) Fortaleza, como muitas outras cidades Brasil afora, vive uma epidemia de crack, a droga devastadora que transforma seres humanos, no estágio mais grave da dependência química, em verdadeiros zumbis violentos dispostos a tudo para alimentar o vício; 3) O comércio de arma de fogo é praticamente livre na cidade: na feira da Parangaba vende-se (ou aluga-se) pistola automática como se vende banana, carro usado e pássaro silvestre; 4) A política de segurança pública desastrosa do atual Governo do Estado, cara, ineficiente e sem diálogo com a polícia; 5) O excesso de individualismo e de consumismo da nossa era, que povoa o imaginário de ricos e pobres e arrasta a sociedade pouco a pouco para um estado de barbárie.

* Tratada a causa, curam-se os efeitos. 

sábado, 22 de março de 2014

ALTOS E BAIXOS


EM ALTA

A Missão Redentorista da Paróquia de Nossa Senhora do Rosário de Aracati/CE. Uma igreja que abraça corajosamente a causa do oprimido; que caminha de mãos dadas com a organização popular; que, quando o sino da injustiça social ressoa, é quem primeiro aparece para ocupar a frente de resistência. 


EM BAIXA

A truculência da Prefeitura de Fortaleza com o patrimônio histórico-cultural da cidade. Se há necessidade de investimentos para atender aos reclamos dos financiadores de campanha, esfola-se o que se mete pelo caminho. A vítima da vez é a Praça Portugal, que, para o atual prefeito, nunca foi uma praça, mas apenas uma rotatória... O que enxergamos nos outros (e até nas coisas) reflete realmente muito de nós mesmos.

EM ALTA

O rio Coreaú, que depois de uns três anos volta a correr, na contramão do abandono, do assoreamento e do inverno precário. Um rio que conta muitas histórias, que marcou a vida de muita gente, que é cantado em verso e prosa, mas que arqueja solitário, sem nenhuma mão amiga a lhe consolar. 

EM BAIXA

A vetusta política no modelo casa-grande e senzala que segue varrendo o nosso sertão, sob um risível rótulo "progressista"...

sexta-feira, 21 de março de 2014

FEITIÇO DO JERIMUM



Era o ano de 1930 no município de Tamboril, já no último instante do crepúsculo, quando um rapaz voltava sozinho do seu roçado depois de um dia inteiro dedicado ao trabalho de roçar o mato. Ao chegar em casa, deparou com ela fechada e sem ninguém. De imediato assustou-se, mas lembrou-se de que era dia de quermesse e concluiu a ausência de todos. Entrou na casa, fez os seus asseios e foi preparar o seu jantar. Cozinhou um jerimum, machucou-o e comeu com leite e açúcar. Como estava enfadado e já perdera quase a metade do festejo, resolveu ficar em casa. Presepeiro, decidiu assustar os familiares quando chegassem. Pegou um jerimum e fez uma cara nela, colocou uma lamparina acesa dentro, pendurou em um armador envolto num lençol branco bem na frente da porta de entrada e ficou escondido no canto da sala para presenciar o susto das pessoas. Passados cinco minutos, ele olhou para o jerimum e olhou para porta. Passados dez minutos, ele olhou para o jerimum e olhou para a porta. Passados vinte minutos, ele olhou para o jerimum e percebeu que estava era sozinho com uma "assombração"... E sem demora abriu a porta e, num repente, dirigiu-se ao encontro de seus familiares, visto que a criatura acabara vencendo o seu criador...

Cláudio César
Coreaú/CE

P.S.: Fato real acontecido com meu avô Antônio Rodrigues Tôrres, conhecido como Major.

quarta-feira, 19 de março de 2014

(IN)CONSCIÊNCIA DE CLASSE


No capitalismo, há a classe dominante, proprietária privada dos meios sociais de produção, e a classe trabalhadora, titular da força produtiva, negociada sob a forma de salário. Entre uma e outra, figura a pequena burguesia, com afinidades sociais e ideológicas com a classe dominante (burguesia autêntica), porque possui capital, retratado em bens móveis e imóveis, malgrado esteja fora do núcleo central do capitalismo, dado não dispor dos meios sociais de produção. São os profissionais liberais bem sucedidos, os servidores públicos melhor remunerados, os diretores de grandes empresas, os donos de pequenas propriedades fundiárias, os pequenos comerciantes... 
Essa pequena burguesia é o que, grosso modo, se chama atualmente de classe média, cujo grande sonho sempre foi ascender à classe dominante e cujo pesadelo maior sempre foi o de se transformar em classe operária. Nesse projeto, a ideologia da classe média prega a ordem e a segurança, tendendo, portanto, a ser conservadora e reacionária, sobretudo no afã de preservar os seus padrões de vida e de consumo. 
Que o crescimento da classe média no Brasil traz consigo uma tendência conservadora e reacionária (já perceptível), não há negar; no entanto, o que ainda causa mais incômodo entre nós é a tendência conservadora e reacionária observada amiúde no seio da própria classe trabalhadora, que muitas vezes no mero limiar do mínimo existencial consegue posar ideologicamente de classe média...

sexta-feira, 14 de março de 2014

EMBRIAGUEZ POÉTICA


Era vespertino do dia treze de março de 2014. Quando cheguei ao apartamento onde moro, fui surpreendido por um envelope de cor amarela deixado pelos correios que continha um licor adocicado de prosa-poética. Veredas Sinuosas batia a minha porta e desejava me consumir. Fui mais forte e resisti, eu já estava atrasado para ir trabalhar.
Depois que terminei minha aula, por volta das vinte horas, voltava para casa de bicicleta e um frio me batia na barriga. Uma inquietude turbava meus pensamentos. Minha boca enchia-se de água ansiando saborear aquele licor. Não resisti à tentação, mudei a rota.
Sentei-me no banco de uma praça, sem se preocupar com quem estava lá, abri a mochila e retirei aquela bebida. Aos poucos, tomei o primeiro gole, outro gole, mais um gole e de repente estava secando a garrafa, fiquei bêbado de poesia.
Como todo homem embriagado, “chorei, esperneei / Não adiantou. / Nada mudou, / Sem antes mudar eu”. O bom é que eu não estava sozinho, “Do Choro, do Parto”, Benedito caiu aos prantos também.
Eliton acompanhado de Mário Gomes “travaram um dialogo confuso” na mesa de um bar, próximo do Dragão do Mar. Mário ofereceu um cigarro e Eliton um chope, ambos recusaram e a poesia se deu. Eliton em um “Elogio da Loucura” recordou seu tio Valdemir, um homem que ficou fraco do juízo, porque sua mulher precisou partir.
Já era tarde da noite e eu precisava ir, levantei-me embriagado, “Andei sem rumo, / E estou a andar / Extasiado, / Com tantos destinos, / Caminhos que o sol / Facilmente me dá!”

Messias Pinheiro
Poeta  Iguatu/CE

A QUEDA DO FERRIM



Domingo, 23 de fevereiro de 2014, por volta das 17:52 minutos... O árbitro Cleston Santino apita o final do jogo entre Quixadá e Ferroviário. A derrota sacramenta o esperado rebaixamento do time coral, fato que até soou "normal" para todos os que acompanham o velho futebol cearense.
Seguindo os ditames do jornalismo, ao final do jogo, o repórter Kilmer de Campos, pela Rádio Assunção Cearense, se aproxima de Betinho, autor do gol único daquela tarde do Estadio Abilhão, em Quixadá, e questiona:
– Betinho, você fez o gol que rebaixou o Ferroviário?!
A resposta do jogador, contudo, foi emblemática:
– Não, eu não! O Ferroviário já é um time rebaixado de vários anos. Eu fiz apenas aquilo que qualquer um faria.
Por mais esperado que fosse o rebaixamento do Ferroviário, a resposta do atleta do Quixadá despertou em mim um "mix" de sentimentos!
A que ponto chegava o Ferroviário?! Rebaixar o conhecido "Tubarão da Barra" agora já não era "marco" ou "fato" para um atleta profissional! Era apenas uma coisa banal, era algo que qualquer um, e em qualquer tempo, faria!
Reitero, o fato era esperado! Mas a resposta do jogador me fez reviver momentos de uma grande história e revirar alfarrábios, um dia escritos para este mesmo Ferroviário!
A que ponto chegava o Ferroviário! Outrora grande, outrora sonho de tantos atletas profissionais do Estado... O time da "Estrada de Ferro" agora é tido como um time qualquer!
O Ferrim não é mais desejado; pelo contrário, é desdenhado pelos jogadores...
Mas não é esse o Ferrim que eu já vi!
E, puxando apenas da memória recente, nem é tão difícil buscar nos rabiscos momentos que fizeram do Ferroviário um brasão respeitado pelos torcedores de todo o Estado.
Há 20 anos, quando criança, eu vi o Ferrim ser bi-campeão cearense. Eram os anos de 94 e 95.
Chegava 1996 e eu me recordo do nervosismo que era enfrentar esse Ferroviário em busca de um tri- campeonato. Lembro de estar no Castelão na final do campeonato daquele ano! O Ferrim perdeu o tri para o meu Ceará, mas vendendo caro a derrota! O gol do título alvinegro saiu somente aos 43 do 2.º tempo!
Sim, esse Ferrim! Esse Ferrim já deu muito trabalho, amigo!
De 94 a 96, pulo apenas um ano e chego em 1998! Lá estava esse mesmo Ferroviário, de novo, na final do campeonato estadual!
Para os que se recordam, 1998 foi aquele ano atípico em que um regulamento fajuto permitiu ao Ceará "importar" do interior de São Paulo um time inteiro, com treinador e tudo, só pra disputar a final daquele campeonato! Nas palavras do então presidente alvinegro Elísio Serra: "O tri-campeonato não tem preço!"
E não teve mesmo! Mas, ao fazer um ato tão extremo, implicitamente, o "milionário" Ceará assumia que, time por time, era inferior ao "modesto" Ferroviário"!
E, naquela final, eu vi o Ferrim tomar 4 x 1 desse "importado" do Rio Branco de Americana, que vestia a camisa do Ceará. Mas, o que parecia fácil, saiu saiu difícil! O Ferrim devolveu a pancada do primeiro jogo, venceu com autoridade a segundo partida e levou a decisão do campeonato para a prorrogação! O título, ao final, ficou com o Ceará, mas ninguém tira o brio daquele time coral!
Eh, Ferroviário! De tantos e quantos times e jogadores importantes!
Eu mesmo posso dizer que vi o Ferrim ter em seu arco o goleiro Clemer, que depois foi campeão da Libertadores pelo Internacional/RS!
Eu vi o Ferrim do volante Naza, depois campeão brasileiro pelo Vasco, do zagueiro Santos e do lateral Branco!
Eu vi o Ferrim do meio-campo Lima, hoje na Itália, Ricardo Lima e o lendário meia Acácio!
Eu vi o Ferrim que tinha um ataque infernal de Batistinha, Reginaldo e Cícero Ramalho!
Memórias de um Ferroviário grande! E, dentre tantos jogos e campeonatos, esse eu não posso deixar de citar! Como torcedor do futebol cearense, fui diversas vezes ao PV acompanhar o Ferrim que fazia grande campanha na Série C de 2006!
E aquela não era uma Série C qualquer! Aquela era uma terceira divisão que tinha "só" Bahia e Vitória! Os dois maiores clubes baianos, um campeão brasileiro (em 1988) e o outro vice brasileiro (em 1994).
E o Ferrim, representante cearense da época, desafiou os dois! E quase subiu pra segundona!
Lembro que o Ferrim naquela época era comandado por Arnaldo Lira e tinha Fernandinho, hoje no São Paulo, Everton, hoje campeão brasileiro pelo Cruzeiro e ele, o eterno artilheiro, Sergio Alves!
E, se a memória não me falha, creio eu ter sido num feriado de quarta-feira que eu não vi a hora passar e me vi "obrigado" a sair da praia direto pro PV, só pra ver o Ferrim enfiar 07 (sete) no Bahia!
Sim, eu posso dizer que estava no PV quando este mesmo Ferrim, hoje rebaixado, enfiou 07 (sete) gols no Bahia! E nem faz tanto tempo assim... Era 2006, amigo!
O rebaixamento do Ferrim, reitero, era esperado! Mas uma grande história não pode morrer assim!
Espero ainda rever o Ferrim que eu já vi... Mas, de verdade, tenho medo de ter visto "o começo do fim"!

Raphael Esmeraldo Nogueira
Defensor Público e Cronista

quinta-feira, 13 de março de 2014

SENTIMENTO DO MUNDO











Tenho apenas duas mãos e o sentimento do mundo,
mas estou cheio de escravos,
minhas lembranças escorrem e o corpo transige
na confluência do amor.
Quando me levantar, o céu estará morto e saqueado,
eu mesmo estarei morto, morto meu desejo, morto
o pântano sem acordes.
Os camaradas não disseram que havia uma guerra
e era necessário trazer fogo e alimento.
Sinto-me disperso, anterior a fronteiras,
humildemente vos peço que me perdoeis.
Quando os corpos passarem, eu ficarei sozinho
desafiando a recordação do sineiro,
da viúva e do microscopista que habitavam a barraca
e não foram encontrados ao amanhecer
esse amanhecer mais noite que a noite.

Carlos Drummond de Andrade

domingo, 9 de março de 2014

ENCONTRO MARCADO


Seu Gomes estava certo da visita. Havia contado o número de pedras do revestimento da parede da Matriz. Entre a primeira e a última, à época sinalizadas com um P e um U, havia 185 pedras, cuja soma resultava 14, o seu número da sorte. Contou 14 janelas abertas da barragem até sua casa. A escultura da deusa grega do seu quarto media 14 centímetros. A lua se tornaria crescente a partir do dia 14 do mês... Não havia dúvida, o dia marcado era mesmo 14 de fevereiro, dia de São Valentim, padroeiro dos namorados. 
Ao entregar o jornal no cartório, o tabelião lhe assegurou:
– Pode-se preparar, rei! Quarta-feira ela estará na Palma para lhe ver. 
O dono da farmácia confirmou a informação:
– Ela virá de helicóptero e pousará no campo de aviação. 
– Quarta-feira, agora?!
– Sim, quarta-feira! 
Não conseguia disfarçar a ansiedade. Iria enfim conhecer sua rainha. Tratavam-na por princesa Diana, mas na cabeça dele era a sua rainha, que viria do distante Reino Unido para conhecê-lo.  
A própria princesa teria conversado com ele pelo telefone, combinando os detalhes da chegada, num português bastante claro.
As pessoas tratavam-no como rei sarcasticamente. Nada obstante, ele estava convicto da sua condição de monarca, somente não exercendo os poderes inerentes ao cargo, segundo seus conselheiros, por uma infeliz circunstância: a falta de uma rainha. 
Na véspera do encontro, quase não dormiu à noite. Levantou-se no meio da madrugada para mudar de lugar um paralelepípedo da rua, por um estranho pressentimento. Mudou de canto também a estátua da deusa grega no seu quarto. Contou novamente o número de pedras entre o P e o U da igreja... A noite parecia não ter fim.
Acordou bastante enfadado, com o pensamento em disparada, dores no corpo e um irritante barulho no ouvido esquerdo. Foi até a farmácia, comprou alguns medicamentos para dor de cabeça e saiu confiante após o piscar de olho do farmacêutico. 
Às 9 da manhã, vestido num terno surrado, com a melhor calça de linho e o sapato engraxado, seguiu solene pela rua rumo ao campo de aviação. No meio do caminho, colheu três flores numa roseira, amarrou-as numa fita e seguiu com um aspecto ainda mais sereno, com o singelo buquê na altura do peito. 
Um séquito de curiosos logo se pôs a acompanhar com euforia os passos do rei. Alguns perguntavam, em  meio a risos e gritos de canalhice: 
– Aonde esse maluco vai todo enfeitado?
Quando o vistoso rei chegou ao campo de aviação, a multidão contava para mais de quinhentas pessoas. Aos poucos cada um foi sabendo do encontro mirabolante. Ninguém para além dele acreditava na vinda da princesa Diana, mas ainda assim todos permaneceram na vigília jocosa.
Houve fogos de artifício, discursos, aplausos, orações e muita galhofa, mas nem sinal do helicóptero da princesa. Depois de algum tempo, cada um foi tomando seu rumo, até que por volta do meio-dia restou apenas o nosso solitário rei, no meio do sol quente, ensopado de suor, com a visão turva de tanta fome, sede e desolação.
A despeito de tudo, o rei permaneceu estoico, com as rosas na mão, no meio do sol quente do campo de aviação, não dando ouvido aos parentes que chegaram tentando dissuadi-lo da ideia disparatada. Não aceitou a comida, a água e nem a sombrinha que lhe ofereceram, demonstrando disposição para esperar pela princesa até quando as forças do seu corpo franzino permitissem. 
Felizmente, antes do final da tarde, uma alma engenhosa apresentou-lhe uma carta, supostamente assinada de próprio punho pela princesa. Diana justificava o cancelamento da visita por um problema de saúde e garantia-lhe que em breve realizaria o sonho de conhecê-lo. A carta fora redigida em português bastante ruim, mas animou-lhe particularmente o encerramento, que dizia: 
Kisses and embraces
E só então nosso rei, cheio de sonhos, resolveu retornar para casa.

quinta-feira, 6 de março de 2014

A ALIENAÇÃO E O SUPERFICIALISMO



No atual mundo globalizado e das comunicações instantâneas, cada vez mais as pessoas ficam dependentes da tecnologia. No entanto, não deveriam ficar "escravos" ou "alienados" do avanço tecnológico, que inevitavelmente é irreversível. A tecnologia veio para melhorar a vida das pessoas, mas em muitos casos não é o que tem acontecido, em face dos exageros e das impropriedades, especialmente quando se expõe com vulgaridade, descuido ou "fake", sem refletir nas consequências negativas que poderão advir.
O mundo lá fora pulsa e algumas pessoas não se dão conta disso, ficam "presas" com seus “brinquedos eletrônicos”, deixando até de realizar atividades bem mais importantes e úteis para as suas vidas, como: estudar, passear, ler um livro, conhecer lugares, experimentar, ser feliz etc..
Parece um paradoxo, mas as novas tecnologias estão tornando as pessoas cada vez mais alienadas e superficiais, como previu Einstein, até porque o mundo virtual é bem diferente do mundo real. Vivemos a época da exposição exacerbada nas mídias e redes sociais. Hoje, o indicativo é de que quem não está na mídia é careta e "desantenado" com a realidade atual. Até o vocabulário mudou. Não é bem assim!
Têm pessoas que criam “perfis” de si mesmas que não correspondem às suas realidades. Algumas chegam a perder a noção do perigo e da boa educação e convivência, pois conversas saudáveis são interrompidas e truncadas por conta de uma nova foto ou mensagem instantânea que chegou. Interrompem qualquer coisa até mais importante para dar atenção ao brinquedo tecnológico, com mudanças radicais de hábitos. Isso não é bom!
Por dar mais atenção ao seu novo celular, "tablet", "smartphone", etc., as pessoas não se dão conta do que ocorre ao seu redor, no ambiente onde vivem, trabalham, enfim, por onde andam, tornando-se presas fáceis para mal-intencionados, por exemplo. Têm pessoas que não conseguem atravessar uma faixa de pedestre ou uma rua sem ficar olhando ou lendo ou teclando no celular. O aparelhinho fica grudado na mão. Na missa o padre reclama com veemência. No teatro nem se fala. Isso é um absurdo e falta de educação, além de exposição ao perigo. Não tem nada melhor do que uma boa conversa olho no olho, numa discussão saudável, sentindo e presenciando as reações do próximo, a satisfação, a tristeza, a alegria, o espanto, a surpresa, a revolta, a indiferença, etc., do companheiro, do amigo, do colega, do esposo, do namorado, do amante etc. Enfim, só o calor humano propicia isso, jamais a máquina. Esta apenas ajuda. As pessoas não devem querer ser o que não são por causa dos modernos meios de comunicação eletrônica via internet. Seja você mesmo, com todos os seus erros e defeitos, e seja feliz como você é. Felicidade e boa sorte para todos.

Cosmo Carvalho

domingo, 2 de março de 2014

MÁSCARA



No canto do quarto, sentado sozinho, 
Repara no espelho um desfile passar:
Os sonhos se foram num redemoinho,
Não há mais menino no rio a brincar.

Foi falsa esperança, velhaco adivinho:
Não basta o sereno p'ra terra invernar.
O logro não veio, o agora é mesquinho;
O porvir segue ainda uma tela a pintar.

Na larga avenida, desce em desalinho
O bloco mambembe, num lento pisar.
Esgueira-se entre a poeira e o espinho,
A máscara que ensaia seu tosco cantar.

No galho lá fora, canta o passarinho:
A vida se espraia p'ra além do espiar.
Há rastro escuso no longo caminho,
Oposto ao destino que intenta chegar.

Eliton Meneses